Heloisa Murgel Starling
Na manhã de 31 de agosto, em Uberlândia (MG), o presidente Jair Bolsonaro se sentiu à vontade para liderar nova investida de volta ao passado. Montou a cavalo, ajeitou na sela a bandeira do Brasil, reuniu-se ao grupo de apoiadores à beira da rodovia. Na sequência, ergueu um troféu à guisa de espada desembainhada.
Arremedava a cenografia idealizada pelo pintor Pedro Américo para o quadro “Independência ou Morte”, encomendado em 1886 pelo Monumento do Ipiranga, em São Paulo. Os brasileiros conhecem a tela e a interpretam como o registro preciso do instante em que a Independência foi proclamada. Mas a tarefa de Pedro Américo era ingrata —foi preciso exagerar na fantasia para representar em Dom Pedro 1º a figura do príncipe arrebatadoramente libertária e seu gesto heroico diante da batalha ali anunciada. Um pouco mais tarde, naquele mesmo dia, Bolsonaro insistiu no assunto: é preciso trazer “nova Independência” ao país. “Creio que chegou a hora de nós, no dia 7, nos tornarmos independentes para valer”, afirmou.
Não é a primeira vez que a Independência do Brasil acaba sequestrada por governantes com vocação autoritária. Em 1972, nos festejos de celebração dos 150 anos da data que associamos à fundação do país, a ditadura militar executou uma gigantesca e bem-sucedida apropriação do acontecimento histórico.
Durante cinco meses, uma grande urna contendo os restos mortais de Pedro 1º percorreu todas as capitais brasileiras até o sepultamento solene no Museu do Ipiranga, em São Paulo. “Dom Pedro fez a independência política; o governo dos militares estava realizando a independência econômica”, alardeava, incessantemente, a propaganda oficial.
Milhares de pessoas foram às ruas para confirmar a linha imaginária que conectava Pedro 1º ao general Emílio Garrastazu Médici, então na Presidência da República. E muita gente saiu de casa disposta a cantar a marchinha do “Sesquicentenário da Independência”, em especial o refrão, matador: “É Dom Pedro 1º! / É Dom Pedro do Grito! / Esse grito de glória / Que a cor da história à vitória nos traz...”. O livro “A Ditadura em Tempos de Milagre”, de Janaína Cordeiro, conta essa história.
São práticas de mimetismo autoritário, decerto. A retórica de Jair Bolsonaro, contudo, contrabandeou para o perímetro do Executivo um discurso ideológico que não tem nada de conservador —é reacionário. Na sua acepção moderna, o reacionarismo costuma ser mais complexo e elaborado do que se imagina. Abre guerra em torno de valores, dispõe de potência para mobilizar uma franja larga da sociedade em reação às conquistas civilizatórias e democráticas, apresenta uma explicação da realidade e dos problemas do país com aparência lógica, mas fictícia. Um dia o país realmente foi o que deveria ser; este é o Brasil a que estamos destinados, o Brasil no qual merecemos viver. Portanto, precisamos partir rumo ao passado.
Compartilhar essa lógica pressupõe substituir o pensamento crítico por um laço emocional regado em afetos tristes: ressentimento, perversidade, intransigência, medo. O reacionarismo é anti-histórico; o passado permanece sempre igual a si mesmo. Mas a volta está sob cerco do inimigo, o tom de ameaça é constante, a mobilização precisa ser contínua. Tornou o Brasil ilegível. Pela primeira vez na história falta-nos um projeto de futuro.
Comemorar significa lembrar juntos. Vista do Ipiranga, a Independência concebeu a ideia de Império e manteve a unidade da América portuguesa, um meio eficaz de concentrar poder, garantir a ordem social e preservar a escravidão —criou a matriz de configuração do Estado brasileiro.
Os anos da Independência, contudo, foram de crise e de forte movimentação política, fartos em complexidade e contradições. Narram o difícil percurso de uma ideia de país buscando tornar-se realidade, no longínquo século 19. E contam algo sobre o brasileiro que um dia já fomos —ou poderíamos ser. A história não está escrita nas estrelas, e as lembranças desses anos talvez ajudem a clarear as escolhas para os dias que correm. Afinal, nenhum de nós sabe por quanto tempo uma sociedade sobrevive sem futuro.
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