LUZIÂNIA (GO)
"Dia 21 de novembro de 1971. Fiz Royal de Copas. Jogaram: Odete, Sarah, Paulo Nonato e Chalaça."
A mensagem, escrita a caneta com letras tortas no tampo de uma caixa de jogos, parece comum a um jogador afortunado em uma rodada de pôquer.
Não fosse a assinatura logo abaixo: JK, iniciais que entregam que o vencedor daquela partida foi Juscelino Kubitschek.
As memórias do presidente que governou o país de 1956 a 1961 estão por todos os lados de uma fazenda localizada em Luziânia (GO), cidade a 60 km de Brasília, capital planejada e inaugurada por ele.
Última residência do médico e político mineiro, a chamada Fazendinha JK fica hoje aos cuidados de um casal que luta por conta própria pela preservação do local —a ponto de usar apenas 30% do espaço que pertence a eles mesmos.
Sentar no sofá? Nem pensar. Usar a mesa de vidro de JK? Só uma vez ao ano, no Natal, e apenas após tirar de lá as cadeiras onde ex-presidente e amigos costumavam sentar.
"Na prática, acabamos ficando mais do lado de fora do que dentro da casa", relata Antônio Servo, que cuida de toda a área com a mulher, Rosana.
A rotina também é imposta aos filhos e à mãe, de 85 anos –a única com algumas exceções.
Não faltam motivos para tamanho cuidado.
Comprada por Juscelino em 1972, a área, inicialmente com 310 alqueires, era parte do sonho do ex-presidente de ser fazendeiro em Goiás.
"Ele queria mostrar que plantar no cerrado era viável", conta Rosana. Também queria ter um lugar que o deixasse próximo de Brasília, mas o lembrasse de Minas Gerais.
As obras no espaço duraram dois anos. O jardim foi feito pelo paisagista Burle Marx. Já o projeto da casa, que remete às casas mineiras, é do arquiteto Oscar Niemeyer.
Dentro, há três salas. Uma delas é revestida em um papel de parede que imita palha e bambu e voltada a jogos. Em outra, fica a TV. Já a terceira abriga biblioteca e a mesa de jantar.
Também há quatro suítes e uma cozinha com fogão industrial, onde a família deixa expostas panelas que pertenciam aos Kubitscheks —para fazer o próprio almoço, usa outras mais simples, escondidas dos visitantes.
O piso é em ardósia e carpete verde. Os sofás são forrados em veludo laranja e em tecido com estampas de flores.
Salvo o reflexo do tempo, o que trouxe desgaste ao papel de parede e à pintura do teto, a maior parte do local aparenta estar do mesmo jeito que estaria no fim da década de 1970.
Há ainda na casa outros objetos que pertenceram a JK, como uma foto dele com Albert Sabin, que desenvolveu a vacina contra a pólio, uma jarra com as iniciais de Sarah Kubitschek, quadros que retratam a mãe de Juscelino, louças e copos.
"Deixamos tudo do mesmo jeito que dona Sarah deixou", afirma Rosana, que recebe turistas por lá.
Manter essa preservação não é fácil. Desde o início dos anos 2000, o casal, que herdou a casa do pai de Antônio, o ex-deputado estadual do Paraná Lázaro Servo, tem feito apelo a promotorias e governos para que o espaço seja tombado com patrimônio histórico e cultural. Sem sucesso.
Agora, a descoberta de vazamentos e a falta de recursos suficientes para manutenção lançaram novo temor de que a memória da última casa de JK seja engolida pelo tempo.
Com receio de quebrar as paredes para descobrir a origem do problema e prejudicar a estrutura, a família mantém fechados dois banheiros da casa há dois anos.
Enquanto isso, tenta apoio para restauro, estimado por arquitetos em cerca de R$ 5 milhões.
Questionado, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) disse que recebeu o pedido de tombamento da Fazendinha em 2006, mas concluiu que a responsabilidade cabe à Secretaria de Cultura do Estado de Goiás.
A secretaria foi procurada pela reportagem na sexta-feira (20), mas ainda não respondeu.
Enquanto não há solução, a família se vira como pode para preservar os objetos da casa, todos já catalogados.
Não são poucos. A biblioteca, por exemplo, é formada por uma estante com 1.800 livros. Alguns têm dedicatórias e anotações feitas pelo chamado "presidente da bossa nova".
Um deles é o livro Invenção da Cidade, de Clemente Luz, com dedicatória escrita à mão pelo autor a JK, além de resposta dele em carta incluída na obra. Em outro, Juscelino relata o primeiro sorriso da filha Márcia ainda bebê.
Já uma fita de rolo, cujo conteúdo nunca foi acessado pela família Servo por falta de equipamento, traz um bilhete com letra semelhante à que o presidente comemorou a vitória no pôquer: "Fita gravada pelo Rodrigo. Muito bôa".
A contar pela casa, os bilhetinhos parecem ter sido uma mania do ex-presidente. "Encontramos vários espalhados", diz Rosana, que chegou a cursar história para descobrir mais sobre JK.
Segundo ela, os registros que abordam a Fazendinha apontam que ele soube de lá por indicação de moradores próximos ao aeroporto rural de Luziânia.
Na época, Juscelino, que teve seus direitos políticos cassados como senador, era impedido de voltar a Brasília pelos militares e procurava um lugar onde pudesse ver as luzes da cidade.
Soube, então, da Fazenda Santo Antônio da Boa Vista, que tinha um morro mais alto.
Acabou por comprá-la e viveu ali até 1976, data em que morreu em um acidente de carro em Resende (RJ).
Oito anos depois, em 1984, a notícia de que ali havia uma fazenda chegou a Lázaro Servo. "Papai era fã do Juscelino. Ele soube da fazenda por um corretor e colocou na cabeça que iria comprar se a dona Sarah vendesse." Sarah topou.
Mas morar na fazenda nem sempre foi divertido. Assim que chegou, Lázaro deu o recado à família: havia comprado aquele espaço apenas para preservar tudo ali que estava ali dentro.
O recado frustrou os planos do Antônio adolescente de dirigir a Mercedes 1963 que pertenceu a Juscelino e estava na garagem. Na única vez que o fez quando jovem, o pai esvaziou os pneus no dia seguinte, evitando que o carro pudesse ser retirado dali de novo —o que só ocorre hoje em comemorações históricas.
A tentativa em manter tudo intacto, no entanto, nem sempre foi bem compreendida. Nos últimos anos, conflitos na família sobre o destino da Fazendinha fizeram com que ela ficasse fechada por três anos.
Para Antônio, que evita comentar sobre o caso, a situação era esperada.
"Nem sempre é engraçado não poder sentar no sofá. Depois de um tempo, o pessoal acha chato", diz ele, que afirma nunca ter aceitado qualquer oferta de venda. "Papai comentava que fazenda todo mundo tem, mas a fazenda JK era só a dele."
Segundo Rosana, além do tombamento, a intenção atual é obter apoio de algum projeto que permita apresentar a história de JK a estudantes.
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