Roberto Alvim, o demitido secretário, começou com um Waterloo moral, ao insultar Fernanda Montenegro
Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo
17 de janeiro de 2020 | 17h02
Alguém grafitou, no Twitter, que o inacreditável foi abolido no Brasil. Aqui tudo pode acontecer, já aconteceu ou está por acontecer.
O governo Bolsonaro praticamente se inaugurou no exterior com um sintomático forfait no encontro de Davos, no ano passado. Aquela foto com a mesa vazia, só com os placements de Araújo, Guedes, Moro e Bolsonaro, entrou para a história do vexame e da patetice universais no instante em que o fotógrafo fez clique.
Duvido que no momento exista país mais ridículo e ridicularizado que o Bolsonistão. Como somos um povo gozador, suspeito que só conseguimos sobreviver até agora aos fatos inacreditáveis de nosso dia a dia graças, exclusivamente, ao nosso bem-humorado estoicismo.
Dia desses, um dos personagens do chargista André Dahmer acusou seu interlocutor de não ser “lunático o suficiente para ganhar um cargo no governo”. Em vez de lunático, o “malvado” poderia ter dito: mentiroso, ignorante, semianalfabeto, corrupto, miliciano, evangélico. Ou, simplesmente, militar da reserva.
Bolsonaro escalou militares da reserva cuidando de escolas, do INSS, como se o programa prioritário de seu governo fosse punir servidores públicos e dar emprego aos colegas de farda. Se bem que ainda melhor do que ser oficial da reserva e ganhar uma boquinha no serviço público é ser filha de militar com pensão vitalícia. Uma delas embolsou em dezembro R$ 537 mil.
Prossigamos. Mentiroso é o que mais tem entre os áulicos do capitão Jair. Por osmose ou sabujice, eles distorcem fatos e números, reescrevem a história, e nem se avexam de atribuir à atual administração obras de governos anteriores. O ministro estratosférico Marcos Pontes, coonestado pelo vice Mourão, não exaltou a inauguração da nova Estação Antártica Comandante Ferraz como um projeto do governo Bolsonaro? Quando o presidente tomou posse, as obras da Estação – iniciadas ainda no governo Dilma – já estavam nos finalmentes.
Se a mentira é fruto da ignorância ou de confusão mental, a gente pode até fingir, misericordiosamente, que não prestou atenção, embora seja difícil fingir não ter ouvido o novo comandante da Marinha, Ilques Barbosa Junior, afirmar, no dia de sua posse, que o Brasil já esteve com os EUA “em três guerras mundiais”: a primeira, a segunda, e...ih, a terceira eu perdi.
Por falar em ignorância, esta talvez seja a verruga mais saliente do atual governo, a característica predominante do presidente e sua corte. Nos dois sentidos que a palavra tem: falta de conhecimento & incivilidade.
O caso mais grave é o do ministro da Educação, Abraham Weintraub, campeão nacional de solecismos (“haviam emendas”), erros de crase, ortografia (“imprecionante”, “paralização”, “suspenção”) e até de pessoas (Franz “Cafta”). Dizem que ele só não engrossou o coro dos bolsodescontentes com a indicação para o Oscar do documentário Democracia em Vertigem por não saber se vertigem se escreve com g ou j. É uma vergonha sem paralelos da história do MEC.
Seu antiesquerdismo paranoico – acusou concursos públicos de dar preferência a candidatos marxistas e estudantes de plantarem maconha nos campi universitários – segue o mesmo padrão de histeria e leviandade de seus companheiros de armas infiltrados nos setores mais diretamente comprometidos com a gestão da Cultura, a menina dos olhos da política de reaparelhamento ideológico do Estado do bolsonarismo.
O presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira, despontou do anonimato ao qualificar o rock como coisa de satanistas e abortistas. Por esse despautério, consolidou-se como um dos mais fortes candidatos ao Damares de Ouro deste ano.
Roberto Alvim, o demitido secretário especial de Cultura, um Goebbels tabajara por temperamento e carreirismo, assumira a liderança da guerra cultural em curso. Começou com um Waterloo moral, ao insultar Fernanda Montenegro e, ao invés de recolher-se a um bivaque, avançou suas tropas contra a Fundação Casa de Ruy Barbosa, cuja recém-empossada presidente, Leticia Dornelles, lá foi posta para ser o para-raios de um expurgo que não se satisfez com banir de seus quadros gente de comprovada experiência e competência em pesquisas e guarda de documentos preciosos.
Na segunda-feira, uma manifestação de ex-funcionários e usuários do acervo da Fundação culminou com a entrega de um abaixo-assinado de intelectuais, que chegou a ter 30.000 assinaturas, à nova e inadequada mandachuva da instituição, que tratou o protesto mais ou menos como o presidente tratou a imprensa mundial em Davos 2019.
Na quarta-feira, Dornelles aparou outro raio. O cientista político Christian Lynch, entusiasticamente nomeado por ela para um alto cargo na Casa, acabou vetado, em cima da hora, por Alvim, que descobriu ter Lynch manifestado, algum tempo atrás, “ideias execráveis” a respeito de Bolsonaro. Que eu saiba, só os bolsominions mais caturras ainda não execram o execrável.
Alvim também semeou uma crise no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), autarquia federal por ele tutelada. A historiadora Kátia Bogéa, servidora de carreira no Iphan, foi substituída na presidência do órgão pelo arquiteto mineiro Flávio de Paula Moura, indicado por sua experiência como auxiliar da mãe no restauro de obras de arte.
Pelo mesmo “critério técnico” adotado na escolha do arquiteto, doutores em arquitetura, museólogos e profissionais com longa prática no Patrimônio foram trocados por apadrinhados de políticos da base aliada do governo, entre os quais o dono de uma oficina mecânica e um cinegrafista.
Não dá para acreditar. No entanto, acredite.
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