domingo, 12 de janeiro de 2020

Estrato social que apoia Trump precisa do Estado, mas o combate, Angela Alonso , FSP

Paradoxo é uma irracionalidade a serviço de um sentimento de desamparo

  • 6
O presidente abriu seu segundo ano de governo com ode à ignorância: “A partir de 2021, todos os livros serão nossos. Feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa, vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, são um montão de amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo.” 
Não é a primeira —nem a última— vez que exibe anti-intelectualismo. Atacar ciência e erudição é um de seus esportes preferidos. Perde apenas para a obsessão com violência e sexualidade.
Seu elogio das trevas já nem espanta. Mas segue por entender por que tantos o endossam. Assim como Bolsonaro emula Trump, os entusiastas de ambos se parecem.
As pesquisas de dezembro do Gallup para os Estados Unidos e do Datafolha para o Brasil exalam o ar de família. Trump conta com base firme entre homens brancos (56%), de mais de 55 anos, faculdade incompleta (51%) e conservadores nos costumes (74%). O Gallup não perguntou desta vez, mas nas anteriores predominavam evangélicos. Aqui, parte do entusiasmo escorreu pelo ralo, mas segue firme entre homens brancos (37%), evangélicos (36%) e com mais de 60 anos. 
A parecença se prolonga no espanto que as duas eleições geraram. Lá e cá, choveram livros escritos às carreiras, sem furar a superfície do fenômeno. 
Embora governistas vejam cientistas sociais como cigarras, a pesquisa boa é de formigas, meticulosa e demorada. No Brasil será preciso esperar, mas, para o caso americano há “Strangers in Their Own Land - Anger and Mourning on the American Right” (estranhos em sua própria terra - raiva e luto na direita americana), de Arlie Hochschild.
professora de sociologia da Universidade de Berkeley acompanhou por cinco anos apoiadores do Tea Party na Louisiana. Seu livro calhou de sair em 2016, perto das urnas, e oferece uma explicação para o trumpismo.
Em vez de cavoucar relações frias na internet, Hochschild foi ao cotidiano quente das pessoas comuns, em cidades médias do fundão do país. Ali onde o Tea Party fincou raiz, deu com largo contingente de wasps amargurados. Além de assolados pela recessão de 2008, viviam em meio ambiente que a indústria devastou antes de abandonar.
Hochschild coletou as queixas. Muitos sofriam mobilidade descendente. Apressados logo atribuiriam seu descontentamento à economia, mas não era assim que os futuros trumpistas justificavam sua posição política. Suas reclamações eram políticas, acerca do tipo de intervenção que o Estado exercia em suas vidas. 
Dividiam a sociedade entre “makers”, como viam a si mesmos, os que se fazem na vida pelo próprio esforço, e “takers”, como descreviam os beneficiários de programas sociais do governo Obama. O Estado extorquiria os “makers”, via impostos, para subsidiar os “takers”. Daí o sentimento de injustiça.
Embora políticas como o Obamacare os incluíssem, esses americanos as desdenhavam. Amparo em agruras deveria vir da comunidade, não do governo. Por isso doavam à igreja, pronta a prover nas emergências do dia a dia, e não atinavam para como a taxação estatal os ajudaria. Essa visão do Estado embasava uma aposta simultânea no individualismo do livre mercado e na solidariedade da comunidade religiosa.
Outro desconforto nascia da distância simbólica desses americanos médios em relação ao governo democrata. Viam-se excluídos das utopias de esquerda, que condenavam sua identidade e ameaçavam seus valores. As políticas identitárias valorizariam as minorias —negros, mulheres etc— e estigmatizariam o homem branco, hétero, obrigado pelo politicamente correto a reprimir seus sentimentos profundos sobre raça, sexo, religião.
O ressentimento resultante alimentou, argumenta Hochschild, um “grande paradoxo”: esse estrato social, que sofria problemas econômicos, sociais e ambientais, precisava do Estado, mas o combatia. Uma irracionalidade a serviço de um sentimento de desamparo. A mídia (Fox News) e um movimento social (Tea Party) seriam hábeis em dirigir essa insatisfação para uma política antiestablishment. Essa “história profunda” precedeu a vitória eleitoral de Trump. 
Há semelhança óbvias com o Brasil, mas a diferença é crucial. 
Trump conta sobretudo com os menos educados. Aqui é a elite nacional quem está feliz com Bolsonaro: 35% dos que têm diploma superior, 52% daqueles com dez salários mínimos ou mais e 58% dos empresários acham o governo bom ou ótimo. Gente que sabe ler, mas só tem olhos para os números da economia. Crentes de que eles expliquem tudo, provavelmente não abrirão livros como o de Hochschild, onde tem “muita coisa escrita”. 
Angela Alonso
Professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Nenhum comentário: