Quando o Judiciário julga casos de condomínios e proprietários envolvendo locações via Airbnb está, antes de tudo, discutindo a natureza jurídica das transações desenvolvidas na plataforma
É comum que conflitos entre vizinhos girem em torno de questões cotidianas da convivência. O barulho da festa que extrapola o horário permitido, o vazamento do apartamento do andar de cima, o uso das áreas comuns, a contratação ou demissão de funcionários — esses são alguns dos exemplos da infindável lista de possíveis pontos de atrito. Se, à primeira vista, podem parecer disputas simplórias e menos importantes, muitas vezes estamos diante de conflitos razoavelmente difíceis para o direito. Isso porque brigas de vizinhos envolvem direitos de propriedade que se opõem e que estão no mesmo patamar. E, não por outra razão, podem se transformar em verdadeiras batalhas campais.
Nos últimos anos, a lista de atritos de corredor passou a incluir mais um componente de discórdia. Diante da popularização do Airbnb, proprietários deixaram de morar em seus apartamentos ou de alugá-los por meio de contratos de locação de longo prazo e passaram a anunciar suas unidades na plataforma. Passaram, portanto, a trocar residentes permanentes das cidades por turistas temporários. Alguns condomínios reagiram, proibindo, por meio de assembleia, esse tipo de aluguel de curto prazo. As justificativas para a proibição são de várias ordens: a diminuição da segurança diante da alta rotatividade de hóspedes, o barulho causado por turistas a passeio, a ausência de infraestrutura para receber um grande número de pessoas com muita frequência — o que abrange desde a dificuldade dos porteiros de se comunicar com estrangeiros, até a necessidade de que a portaria desempenhe funções antes não previstas. Sentindo-se lesados, os proprietários que alugam seus apartamentos por meio do Airbnb passaram a recorrer ao Judiciário. Por um lado, o proprietário individual tem o direito de usar, gozar e dispor de seu imóvel, o que inclui a locação. Por outro lado, os proprietários que compõem o condomínio têm o direito de regular — e impor limites — ao uso da propriedade individual na coletividade conformada pelo condomínio edilício. O Judiciário é chamado a arbitrar o conflito, ou seja, a decidir se condomínios podem ou não restringir os direitos conexos ao de propriedade.
Em pesquisa ainda em andamento, identifiquei 33 decisões em casos desse tipo, proferidas por desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para o município de São Paulo, entre julho de 2017 e setembro de 2019. Estamos falando da segunda instância, ou seja, de ações judiciais em que uma das partes recorreu da sentença inicial. Há, em medidas praticamente iguais, decisões favoráveis aos condomínios, aos proprietários e outras que se resolvem em razão de questões processuais — e não propriamente pela análise de mérito da questão.
Quando pensamos e categorias “pró-condomínio” ou “pró-proprietário”, estamos olhando apenas para a parte vencedora da disputa. Mas o mais importante são os argumentos mobilizados nessas decisões. Ao analisar a legalidade da restrição ao aluguel por meio do Airbnb, o Tribunal de Justiça de São Paulo não está apenas discutindo se os condomínios podem ou não se valer da proibição. Está, antes de tudo, discutindo a natureza jurídica das transações desenvolvidas na plataforma. E essa é certamente uma batalha campal que extrapola a relação imediata entre proprietários e seus condomínios.
DEFINIR A NATUREZA JURÍDICA DO AIRBNB NÃO DIZ RESPEITO APENAS A CONTROVÉRSIAS DE CONDOMÍNIO, MAS A COMO DEVE SER A REGULAÇÃO BRASILEIRA DE UM DOS MAIORES REPRESENTANTES DA ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO
As 12 decisões em favor do condomínio seguem um padrão de interpretação bastante parecido. Afirmam que os proprietários têm direito de alugar seus imóveis por temporada. Se é verdade que o direito de alugar decorre do direito de propriedade, também é verdade que direitos de propriedade não são ilimitados: em condomínios residenciais, o proprietário deve seguir a destinação de uso, conforme o artigo 1.336, IV do Código Civil. Os desembargadores defendem que a locação por meio do Airbnb desvirtua o uso residencial: é antes uma atividade análoga à de hospedagem ou hotelaria. Os critérios para estabelecer o uso comercial são, principalmente: (i) alta rotatividade de hóspedes estranhos ao condomínio; (ii) divulgação da unidade na plataforma do Airbnb; (iii) autocaracterização do Airbnb como negócio em seu próprio site e (iv) existência de contrato entre proprietário e visitante. Assim, os condomínios podem proibir a locação por curta temporada via Airbnb não porque podem restringir livremente direitos de propriedade, mas para impedir que edifícios residenciais sejam utilizados para usos comerciais.
Os argumentos das decisões em favor dos proprietários não seguem um padrão fixo. A justificativa mais sofisticada é a do desembargador Milton Paulo de Carvalho Filho, em decisão de fevereiro de 2019. Não haveria diferença entre a locação de longo e de curto prazo, o tempo não mudaria a natureza do direito. Em ambos os casos, há contrato e o proprietário aufere renda. O uso seria exatamente igual. Caso a proibição passasse a valer para a locação de curto prazo, atingiria também a de longo prazo. A finalidade comercial só estaria caracterizada se o proprietário desenvolvesse atividade comercial no local, ou seja, caso uma unidade fosse ocupada com um escritório ou uma loja, por exemplo.
No mesmo processo, o desembargador Pedro Baccarat contestou o argumento, afirmando que o uso residencial não se extrai apenas da oposição ao uso comercial, mas especialmente da duração no tempo.
Assim, residente é aquele que habita um lugar em caráter permanente — dessa forma, o aluguel de curto prazo seria não-residencial. O Airbnb esfuma as noções tradicionais de residência e comércio. Estamos diante de proprietários que fazem um negócio de suas próprias casas. No entanto, isso não quer dizer que exista simplesmente uma inadequação das categorias jurídicas para tratar da assim chamada economia do compartilhamento. Determinar a natureza jurídica do Airbnb é premente para qualquer proposta séria de regulação. E, vale lembrar, regular não significa necessariamente proibir — nem muito menos serrar os chifres de empresas-unicórnio —, mas definir as regras do jogo.
Se for entendido como atividade análoga à hospedagem, não só o desvirtuamento de uso ficará caracterizado nos condomínios, como será, por exemplo, possível tributar o serviço da mesma maneira que os hotéis, a legislação hoteleira passa a ser aplicável e Airbnb passa a ser entendido como concorrente direto desta indústria, com consequências para o direito da concorrência. Se for entendido como locação residencial, nada impediria a equiparação do Airbnb a uma corretora de imóveis. O próprio Airbnb provavelmente não concordaria com nenhuma das classificações, já que entende ser apenas um intermediador e não um prestador de serviços.
As definições de usos comerciais e residenciais também são fundamentais para o planejamento urbano das cidades. O mapeamento das decisões judiciais permitiu analisar os padrões espaciais de localização dos endereços desses imóveis. Além de praticamente todos se localizarem no centro expandido, a vasta maioria em bairros de alta renda, há inúmeros imóveis em áreas com zoneamento que privilegia o uso de transporte público consolidado, para estimular a proximidade entre casa e transporte. Alugados via Airbnb, os efeitos dessa política tendem a desvanecer: turistas não trabalham nas cidades que visitam. Há ainda o caso de um imóvel situado em zona especial de interesse social, que deveria privilegiar a habitação social.
A disputa entre proprietários e condomínios está sendo discutida pelo Superior Tribunal de Justiça. É provável que os argumentos formulados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo sejam mobilizados. Não há solução simples nesse caso. Mas é preciso que os pontos cegos sejam enfrentados. Definir a natureza jurídica do Airbnb não diz respeito apenas a controvérsias de condomínio, mas a como deve ser a regulação brasileira de um dos maiores representantes da economia do compartilhamento. E, muito mais do que a oposição entre compartilhamento de imóveis e a indústria hoteleira, é preciso olhar para como o uso massivo do Airbnb configura políticas de moradia e o espaço urbano das nossas cidades.
Bianca Tavolari é professora do Insper e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Doutora e mestre em direito pela Universidade de São Paulo; graduada em direito e filosofia pela mesma instituição.
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