Neurocientista diz que mesmo pessoas em posições de poder às vezes não tem clareza sobre a importância da pesquisa científica
SÃO PAULO
Ser diretor científico da Fapesp, maior agência estadual de fomento à pesquisa do paísera um sonho que o neurocientista Luiz Eugênio Mello afagava há anos. Mais de uma década atrás ouviu que seria um bom nome para o cargo, mas não naquele momento. “Eu considerava a possibilidade. O que podia fazer era me preparar e me posicionar”, diz.
Em abril, ele realizará esse sonho ao substituir o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, que está há 15 anos no cargo.
Mello fez sua carreira na Unifesp. Lá ele se formou em medicina, fez mestrado e doutorado em biologia molecular, tornou-se professor titular de fisiologia e foi pró-reitor de graduação de 2005 a 2008, quando ajudou na construção dos campi de Santos, Guarulhos, Diademas e São José dos Campos.
Também ocupou o cargo de diretor de tecnologia e inovação da Vale e foi responsável pela implantação do Instituto Tecnológico Vale. O trabalho, diz ele, trouxe um diferencial para seu currículo.
“Aprendi que não adianta ter ideias brilhantes se não há mercado. Se não tiver cliente, não vai ter utilidade social. Não é só na esfera comercial; serve também para ideias que são consumidas”, diz.
E, segundo ele, suas ideias como diretor científico na Fapesp precisarão representar um consenso. “Isso traz perenidade e gera inovação.”
Em entrevista à Folha, Mello falou diversas vezes sobre perenidade. Diz que a possibilidade de provocar impactos significativos, de longo prazo, levou-o à carreira de pesquisador e professor e a considerar o cargo que ocupará na Fapesp. “Organizações nascem e morrem. Hoje, as 500 maiores empresas da Bolsa de Nova York vivem 15 anos, em média. Mas a Universidade de Bolonha, considerada a primeira do mundo, está lá até hoje.”
O que tem de tão especial em ser diretor da Fapesp? São Paulo é a maior cidade do país, e a ciência produzida aqui representa de um terço à metade da do país. Talvez agora, inclusive, essa fatia tenha se ampliado dada a falência do sistema federal de apoio.
Mas há uma questão quase existencial que tem a ver com o que eu escolhi fazer da vida. Quando eu era mais novo, tinha uma dificuldade muito grande com a realidade, de pensar em nascer, crescer e morrer. Pensava num sentido da unicidade que o Asimov explora em “Eu, Robô”, da individualidade, de você ser significativo, relevante. E na Fapesp existe essa possibilidade.
A função de professor te permite, ao contribuir para o crescimento de pessoas, modificar o mundo. É a mesma coisa com gestão: você faz políticas e pode tornar o mundo melhor ou menos pior.
Quando olho para a Fapesp, vejo que ela é uma grande instituição que inspirou “n” outras “Faps” [fundações de amparo à pesquisa] no Brasil, nascida de uma proposta incrível do Carvalho Pinto quando governador lá atrás. Mas, por mais incrível que seja, esteja sendo e tenha sido, pode ser melhorada, como toda atividade humana.
E o que o sr. acha que pode ser melhorado na sua gestão? Minha gestão começa em abril, e daqui até lá a Fapesp tem ainda um diretor científico, o Brito. Quanto mais eu falar que eu vou fazer isso ou mudar aquilo, só vou atrapalhar uma gestão que ainda tem muito a contribuir.
Mas, em linhas gerais, o que dá para falar é que tem processos internos que podem ser melhorados. Custo é como unha e cabelo: você tem que aparar o tempo todo, senão ele engole a organização. Burocracia é a mesma coisa.
E não que a Fapesp não faça isso, pelo contrário, mas acho que é importante ouvir a sociedade em todo o seu leque. Não só a sociedade acadêmica, que é seu principal usuário e beneficiário, mas a sociedade como um todo.
Eu não tenho clareza de que o cidadão comum saiba o que é Fapesp, por mais visibilidade que ela tenha. Não consigo acreditar que tem gente que fala que a Terra é plana. Gera uma estupefação. Acho até ruim falar disso, parece gozação, e sempre que você fala sobre algo propagandiza essa coisa.
O ponto é que talvez a humanidade caminhe por alguns séculos num processo gradual de amadurecimento e entendimento do mundo e da importância da ciência e da tecnologia.
Até por causa da sua experiência, pretende estreitar laços entre a pesquisa pública e a iniciativa privada? A Fapesp já tem um monte de iniciativas nessa praia. Eu tenho várias ideias que pretendo trabalhar, mas para mim uma dificuldade no Brasil é que o entrelaçamento de público e privado sempre foi complexo no âmbito da academia.
Se a universidade é pública, ela não pode ser apropriada por um grupo ou uma empresa, mas deve haver formas lícitas de estabelecer essa relação, gerar um retorno para a sociedade e aumentar produtividade. Não tenho visão utilitarista do mundo e entendo com muita clareza o que é a ciência desinteressada, que muitas vezes é ridicularizada.
O ex-governador Geraldo Alckmin chegou a menosprezar a ciência básica. Isso pra mim é uma oportunidade de trabalho, porque reflete que o cidadão comum e mesmo pessoas bem posicionadas não têm um claro entendimento do que é a ciência e como ela fundamenta todo o resto.
Como garantir que o orçamento da Fapesp não sofra com a crise? No passado, já houve tentativas de fatiá-lo. Na época em que a Fapesp sofreu mais ameaças de cortes, nos governos Maluf e Quércia, para falar de governos mais antigos, o repasse era feito todo no fim do ano sem correção. E, progressivamente, o repasse começou a ser feito mês a mês. Mas até no governo Mário Covas existiram alguns movimentos pra fazer usos dos recursos da Fapesp que não cabiam.
Acho que houve um processo de amadurecimento da sociedade, de estabelecimento de normas e práticas que ajudam muito nessa preservação e manutenção dos recursos.
A questão da crise precisa ser trabalhada de diferentes formas. A primeira é de retorno sobre investimento, mesmo que o retorno sejam artigos publicados. Tenho que ter indicadores principais de performance, trabalhar com eles e ver onde a realocação do recurso vai ser mais eficiente.
E como manter cientistas na profissão diante de cortes de bolsas de estudo? Eu aposto que na época do Guga Kuerten surgiram muitos tenistas. Acho que você tem que ter casos de sucesso, dar visibilidade a eles e mostrar o conjunto de oportunidades e possibilidades. Você precisa mostrar que a profissão é para um leque muito maior de pessoas, eliminar as barreiras que as pessoas colocam dizendo “ah, isso não é pra mim”.
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