domingo, 9 de dezembro de 2018

Quem rouba o dinheiro dos impostos?, Vinicius Torres Freire , FSP


SÃO PAULO
O governo é um monstro que cobra impostos até esfolar os cidadãos, sem oferecer “serviços públicos de qualidade”. É a queixa cada vez mais gritante pelo menos desde 2013, quando o “gigante acordou”.
O sonho da razão produz monstros, já se disse e desenhou uma vez. O gigante desperto na monstruosa algazarra política brasileira faz contas sonháticas, se não delirantes, com receitas e despesas do governo.
Acha que o Leviatã tributário foge com o dinheiro, que não faltaria caso não houvesse corrupção ou marajás.
Mas o governo devolve a maior parte dos impostos diretamente para os bolsos do gigante, que acordou, mas ainda não se olhou no espelho. É o que mais uma vez mostram dados do Ministério da Fazenda, que publicou na semana passada a carga tributária e um detalhamento das “Transferências para Assistência Social, Previdência e Subsídios” (Taps) de União, estados e municípios em 2017.
Alguns cálculos com esses dados ajudam a explicar que a disputa pelos dinheiros públicos em 2019 será feia como a necessidade —é o conflito social que aparece sob o nome de “ajuste fiscal” e “reformas”. Sim, pode ser também que não se faça ajuste nenhum; então, quebraremos à moda do Rio ou teremos grande inflação.
Manifestantes em protesto iniciado após aumento do preço das passagens de ônibus em junho de 2013, em São Paulo - Fabio Braga -20.jun.2013/Folhapress
Por falta de espaço, fiquemos nos dados federais.
A carga tributária federal era de 22,1% do PIB (22,1% da produção ou da renda nacional em um ano). Mas parte disso nem fica no governo federal. Por lei, vai diretamente para governos de estados e municípios. Sobra o equivalente a 18,6% do PIB (mais de R$ 1,2 trilhão, em 2017).
Desse dinheiro, o equivalente a 78% volta quase sem escalas para o bolso de algum cidadão. São aquelas despesas com Taps: Previdência geral (aposentadorias, pensões, auxílio-doença etc.), previdência dos servidores, saques de FGTS e PIS/Pasep, seguro-desemprego, abono salarial, benefícios para idosos e deficientes muito pobres, Bolsa Família e subsídios.
Sim, o equivalente a 78% do total da receita de impostos do governo viaja até Brasília e volta por meio desses pagamentos. E o resto? Por exemplo, quase 9% vão para despesas com saúde e educação. Cerca de 3,8%, para investimentos em obras. Para salários de servidores, 12,7%. Etc.
Embora parte menor des
sas despesas “Taps” não entre na conta do Tesouro, a soma relevante dos gastos ainda resulta em enorme déficit: o governo gastava 14% além do que arrecadava em 2017 (o cálculo não inclui a despesa com juros). 
O déficit ficou especialmente feio depois de 2013, quando a carga tributária caiu um pouco e o gasto da Previdência explodiu (quase todo o estrago recente das contas públicas está aí).
Isto posto, o que o “gigante” pretende fazer? Na verdade, o gigante é um corpo feito de classes sociais ou grupos de interesse, o nome que se dê, que recebe de volta, de modo desigual, 78% da receita do governo. Terá de receber relativamente menos, por muitos anos.
Quem vai perder? Essas transferências sociais já beneficiam menos os mais pobres (famílias em que a renda por cabeça não passa de R$ 400 por mês, 26% da população).
Não existe um “Outro” secreto e fantástico que leva a dinheirama para a Ilha do Tesouro. Boa parte do debate das “reformas” é a discussão de quem paga a conta. 
Essa história de “quebrar o sistema”, “o mecanismo” e resolver o rolo sem dor, “acabando com a corrupção”, é ingênua ignorância ou picaretagem de governante demagogo.
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

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