Passou quase que despercebida a aprovação pela Assembleia Legislativa de São Paulo, na última quinta (12), de um importante projeto de lei que trata da nossa liberdade de escolha de tratamentos na reta final da vida e, em última instância, do direito de morrermos em paz.
O PL 231/2018, de autoria do deputado Carlos Neder (PT), se aplica a pacientes dos serviços públicos e privados e depende da sanção do governador para se tornar lei estadual. A expectativa é de que, depois disso, o tema ganhe força para se tornar uma lei federal.
Inspirado em legislações europeias, como da Espanha e da Itália, o projeto avança nas regras de proteção à autonomia dos direitos do paciente e das obrigações médicas, como a informação clínica, o consentimento informado e o direito de o doente dispor previamente sobre suas escolhas em caso de enfermidade terminal e perda da consciência.
Em comparação com a lei italiana, no entanto, a proposta paulista pode ser considerada, em alguns pontos, até um pouco tímida. Lá, por exemplo, a legislação reconhece que a nutrição artificial e a hidratação artificial são consideradas tratamentos de saúde e, portanto, podem ser rejeitados.
No Brasil, isso ainda parece impensável. Conheço casos de pacientes terminais com tubos de nutrição artificial presos no nariz que, ao tentar arrancá-los, são contidos e amarrados na cama e tratados como “senis”.
De qualquer forma, o projeto paulista não deixa de ser um avanço. O consentimento informado é uma peça fundamental no exercício da medicina, seja como um direto do paciente em aceitar, negar ou interromper tratamentos, seja como dever moral e legal do médico em respeitar essa decisão, amparado legalmente.
Abaixo, veja alguns pontos da proposta aprovada:
- A pessoa com uma doença terminal tem o direito de receber, prontamente e por escrito, toda a informação necessária sobre seu diagnóstico, prognóstico e tratamento, adaptada às suas condições cognitivas e sensoriais.
- Em casos em que essa informação represente grave risco à integridade física ou psíquica do paciente, isso deve ser anotado em seu prontuário clínico de saúde e comunicado às pessoas com vínculo de parentesco, de amizade ou de afeto com o doente.
- A pessoa tem o direito à tomada de decisão informada, conhecendo toda a informação disponível sobre a sua saúde, durante enfermidade terminal para, em acordo à sua vontade, concordar, recusar ou interromper intervenções e tratamentos propostos pelos profissionais de saúde que visem tão somente prolongar sua vida em razão da existência de determinadas tecnologias ou medicamentos paliativos, sem possibilidade de recuperação de sua saúde.
- O consentimento informado ou a negativa esclarecida do paciente, livremente revogável a qualquer tempo, deve ser feito de modo documentado, assinado por si ou por seu representante, devendo essa manifestação do paciente ser anotada em seu prontuário para compor a sua história clínica.
- Quando a pessoa em tratamento não for capaz de tomar decisões ou o seu estado físico ou psíquico não lhe permita conhecer toda a situação e compreender as informações para dar o seu consentimento de modo esclarecido, deverá ser observada a seguinte ordem de representação: a pessoa designada como representante legal; o cônjuge ou o companheiro ou a companheira; os parentes de grau mais próximo, desde que de maior idade; a pessoa que mantém ligação de amizade e afeto com o paciente, de modo reconhecido; a pessoa a cargo de sua assistência ou cuidado com a saúde; na ausência de todos os mencionados acima, o médico responsável pelo cuidado do paciente.
A exemplo do que ocorre na lei italiana, a proposta paulista também avança em fazer valer o direito de crianças e adolescentes em processo de enfermidade terminal. Por exemplo, de receber informações adaptada à sua idade, maturidade, desenvolvimento intelectual e psicológico, além de tratamento médico e cuidados paliativos que ofereçam atendimento de maneira individualizada, e sempre que possível, pela mesma equipe de saúde.
Têm o direito ainda de estar acompanhadas o máximo de tempo possível durante sua internação pelos pais, mães ou pessoas que as substituam, salvo quando isso puder prejudicar o seu tratamento. Também devem ser hospitalizadas juntamente com outros menores, evitando o compartilhamento com quartos de adultos.
O direito aos cuidados paliativos no SUS e nos serviços privados de saúde, seja em hospitais ou no domicílio, também está contemplado no projeto. Entre as terapias, inclui-se a sedação paliativa da dor ou de qualquer outro sintoma que produza sofrimento.
Mesmo que o governo paulista venha a sancionar o projeto, há ainda um longo caminho pela frente até que essas novas diretrizes sejam incorporadas na rotina dos cuidados ao paciente terminal. Além da dificuldade de financiamento no SUS e da capacitação de equipes, há questões culturais e conjunturais que precisam ser mais e mais discutidas, como o tabu da morte e o sofrimento desnecessário causado por terapias inúteis que só fazem bem aos bolsos de profissionais e serviços de saúde sem escrúpulos.
Cláudia Collucci
Jornalista especializada em saúde, autora de “Quero ser mãe” e “Por que a gravidez não vem?”.
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