Thiago Amâncio
SÃO PAULO
O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) assume a partir de 1º de janeiro o comando de um país violento e que mata mais a cada ano. Só em 2017, 64 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, o maior índice da história.
Policiais fazem perícia no corpo de Anderson Pereira Santos, 21, num pequeno campo de futebol na localidade conhecida como Marrocos, no bairro Bom Jardim, periferia de Fortaleza. Anderson não tinha antecedentes criminais e, segundo moradores do local, não morava por lá, mas estava visitando os pais quando foi abordado por sete homens em um carro e atingido com pelo menos sete tiros. polícia diz que Anderson pode ter sido executado por engano ou por ser irmão de um integrante de uma das facções criminosas que atuam em todo o estado do Ceará Jarbas Oliveira/Folhapress/
A segurança pública foi uma das bandeiras em que ele se apoiou na corrida eleitoral. Agora, um dos principais desafios de seu governo é reduzir esse indicador.
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Para isso, no entanto, Bolsonaro esbarrará em uma série de obstáculos: falta de recursos, planos de segurança pública até aqui inócuos, escassez de dados sobre criminalidade, falta de integração entre os diversos atores da área e resistência das Forças Armadas em desempenhar o papel de polícia, entre outros.
A maior parte do trabalho da segurança pública hoje é feita pelas polícias Militar e Civil. Como elas são geridas pelos estados, não há padrão único de atuação e cada uma segue um protocolo diferente.
Quando outros atores entram no jogo, como a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e as guardas municipais, a questão fica ainda mais complicada. Essa descoordenação é um dos principais gargalos da segurança atualmente, segundo analistas.
"Há uma ideia de que a União vai assumir a tarefa de estados que estão em crise. O grande desafio não é a União fazer aquilo que os estados já são responsáveis. É ajudar a melhorar o serviço, a melhorar condições, integrar, articulando, criando padrões e protocolos", diz o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Neste ano, o presidente Michel Temer (MDB) criou o Ministério da Segurança Pública e retirou o assunto da pasta da Justiça, à qual a área ficava subordinada. O novo ministério começou a implementar programas tidos por especialistas como acertados —e um desafio do presidente eleito é manter e aprimorar essas ações.
É o caso do Susp (Sistema Único da Segurança Pública), que pretende integrar ações e dados dos órgãos de segurança. Com isso, criou-se um boletim de ocorrência eletrônico e unificado —hoje, as polícias de cada estado registram os crimes à sua maneira.
Até agora, 15 unidades da federação já o implementaram (AC, RR, AP, MA, TO, PI, RN, AL, SE, MT, DF, GO, MS, CE e SC), segundo o governo federal, e em outros sete o sistema está em implementação (RS, PR, BA, PE, PB, RO e PA).
Bolsonaro terá como desafio estimular os estados mais populosos do país a colocá-lo em prática: SP, RJ e MG, além de ES e AM. O sistema, promete o governo, trará informações de todos os tipos penais previstos na legislação, com georreferenciamento.
Sua implementação completa é importante porque o governo federal quase não tem dados sobre a criminalidade no país —o número de assassinatos, por exemplo, é levantado anualmente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com as secretarias estaduais de segurança.
Com o novo sistema, será possível, por exemplo, visualizar em mapas as áreas mais problemáticas, o que permite otimizar investigações e saber para onde se deve direcionar policiamento e dinheiro.
O novo ministério elaborou ainda um Plano Nacional de Segurança Pública, que está pronto para virar decreto.
O texto prevê 14 objetivos, entre eles meta de redução de 3,5% do número de homicídios por ano, além do combate à violência contra a mulher e ao crime organizado e controle de fronteiras e armas.
O programa ainda estabelece uma série de prioridades, como a superação do déficit de dados e indicadores, a padronização dos registros, o combate às facções criminosas e ao tráfico e contrabando de armas e drogas.
O documento prevê ações a serem tomadas nos próximos dez anos, com possibilidade de revisão anual das metas. A assinatura do plano, por si só, significa pouco. Desde o ano 2000, o governo federal lançou uma série de estratégias nacionais de segurança, mas nenhuma teve impacto expressivo.
O próprio Susp já havia sido proposto em 2003, no começo do governo Lula (PT), mas não avançou.
Em julho de 2000, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) lançou o Plano Nacional de Segurança Pública, com compromissos relacionados à desarticulação do crime organizado e ao controle de armas.
Em 2007, o ex-presidente Lula criou o Pronasci (Plano Nacional de Segurança com Cidadania), com repasses de recursos para ações estaduais e municipais de prevenção à violência e financiamento da Força Nacional de Segurança Pública, que havia sido criada três anos antes.
Em 2012, já com Dilma Rousseff (PT), o Plano Brasil Mais Seguro visava reduzir a alta taxa de letalidade no país.
No fim de 2017, Temer (MDB) anunciou o Plano Nacional de Segurança Pública, que agora terá força de lei.
Nenhum desses mostrou resultados efetivos no principal flagelo da segurança, a alta taxa de homicídios, que coloca o país como um dos mais perigosos do mundo, à frente de México, Congo e Iraque.
No programa de governo, Bolsonaro prometeu que "as Forças Armadas terão um papel ainda mais importante" no combate ao crime organizado. O uso desses militares para tapar buracos na segurança pública, seja em greves policiais, seja em episódios em que a violência saiu do controle, tem custo alto e desagrada as próprias Forças Amadas.
Desde 1992, segundo balanço do Ministério da Defesa, foram 135 operações militares de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), sendo 23 delas em casos em que a violência saiu do controle e 25 em casos de greve de policiais militares.
Essas operações custam muito aos cofres públicos: R$ 2,38 bilhões foram gastos desde 2010, em valores corrigidos pela inflação.
Considerando só as operações em casos de greve da PM, foram R$ 108,4 milhões gastos desde 2010 (em valores correntes). Os casos em que a violência saiu do controle somam R$ 378,8 milhões —isso sem considerar a intervenção federal no Rio, ainda em curso, que não tem balanço fechado e se encerra neste mês.
Outro desafio do futuro presidente será não desagradar a caserna, que lhe dá apoio político (cinco de seus ministros são militares).
No ano passado, em audiência pública no Senado, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, chegou a chamar de “desgastante, perigoso e inócuo” o uso de militares em atividades de segurança pública.
No caso do Rio de Janeiro, o presidente eleito já disse que interromperá a intervenção federal, mas não descartou outras operações no estado, como militares em patrulhamento pelas ruas da cidade.
Bolsonaro vai levar a segurança pública de volta para o guarda-chuva do Ministério da Justiça, que ficará a cargo de Sergio Moro.
O agora ex-juiz federal se notabilizou no combate à corrupção com a Operação Lava Jato. O desafio, desta vez, será lidar com organizações criminosas, que estão em confronto aberto no Brasil.
Moro prometeu adotar estratégias da Lava Jato no combate ao crime organizado e quer asfixiar as facções mirando o patrimônio dos criminosos, o que é tido por especialistas como um caminho mais efetivo que o confronto militar.
O futuro ministro anunciou a criação de uma nova secretaria, de Operações Policiais Integradas, que deve coordenar a atuação das polícias e atuar no combate ao crime organizado. O setor será comandado pelo delegado da PF Rosalvo Ferreira Franco.
A Secretaria Nacional da Segurança Pública ficará a cargo do general Guilherme Theophilo, candidato do PSDB derrotado na eleição para o governo do Ceará. Em entrevista à Folha, na quarta (5), ele disse que deve mirar políticos eleitos com o apoio do crime.
Outro gargalo a ser superado é a falta de recursos para financiar as ações de segurança.
O governo federal gasta menos com segurança do que o estado de São Paulo. O grosso do trabalho na área é feito pelas polícias militar e civil, como atendimento à população, policiamento ostensivo e investigações, administradas e financiadas pelos estados.
No ano passado, por exemplo, a União gastou R$ 9,1 bilhões com a função, enquanto o governo paulista gastou R$ 11,5 bilhões. Neste ano, até agora, foram gastos R$ 7,4 bilhões pelo governo federal. Só até agosto (último dado disponível), SP já havia gasto R$ 7,1 bilhões. A maior parte desses gastos, porém, vai para o pagamento de funcionários, e não para ações de policiamento ou investigação.
Com a crise econômica, no entanto, os estados viram retrair seu poder de investimento e a segurança pública foi uma das áreas sacrificadas.
O Fundo Nacional de Segurança Pública é uma maneira que o governo federal encontrou de repassar recursos para a área e estimular determinadas ações —por exemplo, só podem receber esse dinheiro estados que implementarem planos próprios de segurança.
Para 2019, a expectativa de acordo com a lei orçamentária é a de que os recursos do fundo cheguem a R$ 1,6 bilhão. No entanto, isso representa menos de 2% de tudo o que foi gasto com segurança no país no ano passado.
Há ainda o desafio de gastar os recursos do fundo. Dos R$ 944,7 milhões previstos neste ano, só R$ 210 milhões foram executados.
Outra promessa para a área da segurança do presidente eleito foi flexibilizar o Estatuto do Desarmamento.
Estudos científicos dão como certo que a disponibilidade de armas de fogo aumenta os índices de letalidade. Segundo o Datasus, armas de fogo foram usadas em 73% dos assassinatos em 2016.
Bolsonaro vai encarar também um país com letalidade policial em alta. Nos últimos meses, confrontos entre policiais e criminosos em casos de assaltos a banco no Nordeste e no Sul do país deixaram dezenas de mortos —o último foi na madrugada de sexta (7), em Milagres, no interior do Ceará, quando ao menos 12 pessoas morreram.
Outro desafio de Bolsonaro é fazer valer os sistemas de controle do armamento em circulação no país. Só 5% das armas apreendidas em 2017, segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, estavam cadastradas no sistema da Polícia Federal.
Bolsonaro assumirá uma nação em que são mortos, em média, 175 brasileiros por dia.
Tamanha violência impacta não só milhares de famílias, mas até a economia do país. Estudo da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo federal calculou que, para cada jovem de 13 a 25 anos que é assassinado, o Brasil perde R$ 550 mil por ano.
Só em 2015, a matança de jovens significou uma perda de R$ 16 bilhões em capacidade produtiva —em 20 anos, foram R$ 450 bilhões.
Na prática, isso significa que a violência, além de tudo, deixa a vida mais cara.
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