A simples negativa de um homem causou tumulto em um organismo viciado
A cinco dias de Michel Temer pegar o boné e se preparar para a temporada rimbaldiana que o espera fora do mandato, imagino que, ao fazer um balanço de seu governo, ele se lembre dos sete dias de novembro de 2016, em que, para sua surpresa, um seu subordinado fugiu ao script a que estava destinado. Foi quando o então ministro da Cultura, Marcelo Calero, negou um pedido de seu colega, o ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, para interferir junto ao Iphan pela liberação ilegal das obras de um edifício em região tombada de Salvador, no qual ele, Geddel, comprara apartamento.
Geddel não entendeu a recusa de Calero. Membro do núcleo palaciano, seu pedido nem era para ser discutido. Era assinar, e bola pra frente. Mas Calero parecia inflexível ---o Iphan era adstrito ao Ministério da Cultura e suas normas tinham de ser observadas. Geddel foi se queixar a Temer. Este fez tsk, tsk e também não entendeu a recusa --era o tipo de negócio normal no poder, um colega ajudando o outro.
Temer mandou chamar Calero. Disse-lhe que a política "tinha dessas coisas" e sua negativa criava-lhe "problemas no governo", porque Geddel estava "muito irritado".
Calero ficou firme. Outros ministros propuseram-lhe uma "solução jurídica" interna, que, naturalmente, daria ganho de causa a Geddel e deixaria "todo mundo bem". Calero, sentindo que não tinha instância maior a recorrer, pediu demissão de seu cargo, deu entrevista à Folhacontando tudo e entregou à Polícia Federal gravações de suas conversas com eles. A coisa azedou. Geddel, de calças na mão, também teve de "renunciar", para não queimar Temer.
O que me fascina nessa história é como a simples atitude de um homem honesto pode causar um tumulto num organismo viciado.
E fascina duplamente por ter partido de alguém que eu já admirava e de quem era amigo antes desse episódio.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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