Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
26 Dezembro 2018 | 02h00
O Natal passou mais uma vez. A casa guarda ainda algum vestígio da festa, a geladeira está repleta de sobras e, finalmente, muitos de nós estão de férias ou têm o ritmo de trabalho bem diminuído por causa do fim do ano. As próximas duas semanas são mortas em termos de produtividade, salvo pela posse de novos governantes. Nada melhor do que aproveitarmos o tempo que (finalmente!) parece ser maior para colocar leituras em dia.
Muita gente prefere passar horas diante de um celular ou outra tela, em redes sociais, jogos eletrônicos, canais de streaming. Outros, que ainda lembram como é o mundo real, fogem para balneários, retiros e acampamentos. Todas as opções para relaxar são válidas, mas ler é ir a qualquer lugar sem precisar sair de onde está. Viajou? Leia no avião, no ônibus, na cadeira de praia, na rede. Ficou em casa? Livre-se do smartphone por algumas horas e abra um livro. Jogue-se numa poltrona ou na cama e saboreie o mundo contido nas páginas a sua frente. Se o vício em telefones é muito grande, baixe um aplicativo que bloqueie outras atividades, um leitor de PDF ou de formatos de e-book e... voilà! Leia no bendito aparelho que não sai de suas mãos e entorta cada vez mais seu pescoço.
Está desatualizado ou sem prática? Vou recomendar alguns textos que me marcaram este ano e alguns clássicos para sua quinzena que se abre. Meu sonho é que o bichinho da leitura lhe pegue e que a quinzena se abra para o ano todo de textos e de ideias. Por ora, meu desejo é que suas férias sejam cerebrais. Descansar o corpo exercitando a mente. Desejo dar vigor à massa cinzenta e aumentar nosso repertório cultivando o hábito de crescer pela leitura.
Como este foi um ano de política e de tentativas de imaginar futuros melhores, vou começar com Yuval Harari e suas 21 Lições para o Século 21. Sapiens mergulhou em nosso passado como espécie. Homo Deus, o livro seguinte (já insinuado no final de Sapiens), arriscava previsões de longo prazo para nossa espécie. Agora, o premiado historiador israelense nos provoca, refletindo sobre nossa atualidade e sobre o porvir imediato. Deus, guerras, terrorismo, fake news, imigração, pós-verdade, ignorância e trabalho. Esses são apenas alguns dos temas que o farão pensar antes de fazer votos para o ano novo.
Ainda na mesma toada, Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Um best-seller necessário para os dias atuais. Os autores apresentam os norte-americanos diante da ascensão (para muitos, inexplicável) de Donald Trump, analisam a política antidemocrática desde o nazi-fascismo nos anos 1920 e 1930, passam pelos governos militares na América Latina e chegam ao atualíssimo avanço da extrema direita na Europa. Nesse voo, Levitsky e Ziblatt percebem que as democracias, frágeis e necessárias como sempre, não morrem mais em tomadas de poder, nas mãos de ditadores com porretes nas mãos, mas sim em... eleições. Daí por diante, o que eu disser será spoiler. Corra para ler!
O filósofo germano-coreano Byung-Chul Han lançou os dois livros seguintes há alguns anos. As obras continuam a impressionar pelo exercício que promovem em nosso cérebro e por serem “fininhas”: ninguém pode ter preguiça de lê-las! Não há ordem recomendada e ele tem outros livros muito bons, mas comece por A Sociedade do Cansaço e por A Sociedade da Transparência. Este ano conheci pessoalmente e pude dividir o palco com Gilles Lipovetsky, criador do termo hipermodernidade. Seus livros sobre moda são ótimos, entretanto fiquemos com o último traduzido para o português (Da Leveza: Para Uma Civilização do Ligeiro). Aqui, há uma análise precisa da arte, da cidadania (passando pela lógica da Netflix), para pensarmos nosso mundo e seu feitio hiperconsumista.
No campo da ficção, vamos a um clássico: Quarto de Despejo, escrito por Carolina Maria de Jesus, em 1960. A mineira radicada em São Paulo teve pouquíssimo estudo formal, mas manteve um diário descoberto por um jornalista e publicado na sequência. O cotidiano das favelas paulistas pela visão arguta, crítica, dolorosa e angustiante da autora. Tudo de forma objetiva, em linhas retas e linguagem informal. Uma origem similar a Geovani Martins, a grande descoberta do ano para quem gosta de contos. Nascido na periferia do Rio, formado em oficinas literárias, e já traduzido em nove idiomas, o carioca criou o ótimo O Sol na Cabeça, arrebatando vários prêmios literários.
Bráulio Bessa é um jovem e popular poeta cearense, inspirado pelo cordel e Patativa do Assaré. Tem gente que não gosta porque ele é pop. Eu o li justamente porque ele, em um campo quase abandonado da literatura, vende como pão quente e com ingredientes de qualidade. Seus temas são cotidianos e fazem pensar. Para quem não tem o hábito de ler poemas, funciona como porta de entrada.
Ainda difícil de encontrar, pois não foi publicado por grande editora, está a surpresa do prêmio Jabuti deste ano: outro cearense, Mailson Furtado, que escreveu o longo poema À Cidade, em 2015, fazendo também suas ilustrações e diagramação. O Brasil é um país de bravos e escassos leitores e autores.
Por fim, minha homenagem a Zygmunt Bauman, um dos pensadores com quem mais dialoguei nos últimos anos. Leia seu Retrotopia, escrito pouco antes de sua morte em janeiro de 2017. Um exame lúcido da cisão, do vasto oceano que existe entre o poder e a política em nossos tempos líquidos.
Revisitar clássicos (Diário de Anne Frank ou contos de Clarice Lispector) é sempre um prazer infalível. Em época de crise de livrarias, ler é quase um gesto de resistência. Um livro pode ser bem mais barato do que uma camiseta. É preciso ter esperança.
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