A medida das coisas começa no microscópico. O homem a minha frente no avião dá “ré no muco”
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
09 Dezembro 2018 | 02h00
O homem é a medida de todas as coisas, proclamavam antigos sofistas. A frase pode ser entendida como própria do antropocentrismo clássico, porém foi criada como uma defesa do relativismo. Se somos a única medida, valores como felicidade e tranquilidade dependem de escolhas de nossa consciência individual.
A medida das coisas começa no microscópico. O homem a minha frente no avião dá “ré no muco”. Puxa, com duvidoso prazer, secreções internas com ruído gutural. Fico enojado com meu café na mão, no ar, em dúvida, se continuo tomando ou viro o líquido quente sobre ele. O quinto mandamento inclui gente, digamos, desasseada? Eu poderia determinar todas as coisas, especialmente as que me perturbam? É aqui que Protágoras é colocado contra a parede.
Pessoas falam alto ao celular. Somos informados de detalhes da sua vida fascinante. Problema auditivo ou formativo? O casal no cinema comenta cada cena do filme e come pipoca como refugiados do Holodomor. O balde de refrigerante lembra o mar de bronze do Templo de Salomão. A ingestão dos galões do líquido industrial provoca idas ao banheiro a cada suspiro dos atores na tela, passando, claro, pela minha frente. Eu estou ali, silencioso, tentando ver o filme. O mesmo “não matarás” abarca suínos e casais inconvenientes?
O grande exercício de sabedoria, seguindo a frase inicial, é dar a cada coisa pequena seu ínfimo lugar no painel da preocupação. Terei a liberdade para não me irritar? Voltaire faz pergunta similar sobre minha liberdade ou não em ouvir um canhão que espoca ao meu lado.
Tento melhorar. Anseio pelo Natal, por exemplo, como festa familiar, íntima, de baixar a guarda e se entregar ao momento. Boa comida, rostos conhecidos há décadas, alegria de um grupo historicamente próximo e que pouco se encontra. Como eu vivo em conversas sociais e profissionais, eis a chance de uma noite sem retórica e uma ocasião para ser apenas eu... Perfeito? Não! Há um Karnal namorando alguém e a namorada tem pais que ficariam sozinhos e a família dela tem mais pessoas que ficariam desoladas e a casa é grande, etc., etc. Em resumo, mais um Natal com necessidade de crachá de identificação e contatos formais que, com chance enorme, não estarão no próximo evento de final de ano da família. Sou bom em conversa formal fluida, apenas considero isso trabalho.
De novo, um grau leve de sabedoria implica não estragar uma ocasião especial por um detalhe menor. O grau ninja advanced seria nem considerar o inchaço da lista uma questão relevante. Natal é inclusão e misericórdia, abertura de coração e entrega ao clima celestial. Repita a frase anterior cem vezes antes da sua festa familiar. Pode ser que dê certo. A contradição é: se eu posso blindar toda minha percepção dos contratempos, se consigo não dar ao outro o poder de me irritar, se tenho o dom de não me abalar com o complexo convívio humano, a pergunta que vale um milhão é... por que eu preciso do convívio humano?
Claro: não basta retirar energia do que possa ser ruim. Fórmula boa e antiga: devo focar no que será bom. O que é substantivo? O Natal vivido em família. O que é adjetivo? Detalhes menores, obstáculos, uma tia deprimida, casais desconhecidos perambulando pela festa, repetição de piadas e outros detalhes. O homem é a medida de todas as coisas e a Terra pertence aos homens de boa vontade na data do nascimento de Jesus. Outra frase para você ter repetido com força durante todo o advento.
Sinto que existe uma memória feliz e algo melancólica de outro momento. Houve uma família Karnal em que os quatro filhos eram crianças sem crianças, sem noras e genros, sem anônimos, sem ninguém diferente do que houvera sido aquela mesa ao longo de todo o ano. Naquele espaço tornado mágico pela memória, a abundância e a harmonia eram sanguíneas, intensas. Talvez não fosse, mas não sabíamos avaliar o custo da festa e cansaços de organizadores. Eram cornucópias de comida, presentes em grandes quantidades e éramos, os filhos, atores sem ônus de produção, vivendo e vendo a peça do auto familiar. Seria essa a falta que eu sinto, de infância diáfana. O adulto pesado suspira pelo infante leve. Não podendo culpar nada ou ninguém, transfiro o incômodo para os convidados volantes, cujo olho traz o estranhamento e a distância de tudo. Há o óbvio cansaço da repetição de tudo, do desgaste das coisas que, possivelmente, farão minha conversa ficar perfeita para compartilhar com a já citada tia deprimida. Só agora me dei conta, escrevendo, que o vazio dela também é o de Natais perdidos, de famílias desfeitas, de velórios em excesso, de vozes que se foram e que continuam assombrando. Estarei virando o tio melancólico?
O homem é a medida de todas as coisas. Repetirei o slogan do coro celestial: paz na Terra aos homens de boa vontade. Que seja uma festa de entrega e de capacidade de acolhimento. Que seja, por decisão da minha subjetividade, algo renovado e bom. Hora de mudar minha medida para que eu seja de novo a medida. Bom domingo para todos nós e um possível Feliz Natal.
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