Presidente eleito não leu os acordos que despreza, como o de Paris
Esta Folha já disse tudo o que é imprescindível sobre as ameaças do futuro governo Bolsonaro de abandonar o Acordo de Paris (sobre mudança climática) ou tentar modificá-lo.
A frase do editorial desta sexta-feira (14) é definitiva: “Ambos, Salles e Bolsonaro, se equivocam e demonstram constrangedora ignorância sobre Paris” (o Salles é Ricardo Salles, futuro ministro de Meio Ambiente).
A “constrangedora ignorância” não se limita, desgraçadamente, ao Acordo de Paris. Estende-se também ao recém-assinado Compacto Global sobre Migração Segura, Organizada e Regular.
É óbvio que todo presidente tem o direito (e o dever, de resto) de aplicar as políticas que achar convenientes, tanto as internas como a externa. Mas tem também a obrigação de definir tais políticas com base em um mínimo de racionalidade, e não a partir de “constrangedora ignorância”.
O argumento do bolsonarismo, em ambos os temas, é o de que cabe exclusivamente ao país determinar suas políticas ambientais e migratórias, sem aceitar imposições de outras nações.
Já é um conceito discutível porque, no caso do meio ambiente, por exemplo, é evidente que a mudança climática não se detém nas fronteiras deste ou daquele país.
Logo, ou há uma ação conjunta ou os problemas se acentuarão inexoravelmente.
Mas o ponto aí é outro: nem o acordo sobre o clima nem o sobre migrações são vinculantes, como ressalta a Folha no seu editorial sobre Paris:
“Nada há de impositivo em seu texto para o Brasil ou qualquer outro país. As metas de redução de emissões de carbono ali incluídas são voluntárias (‘contribuições nacionalmente determinadas’).”
Vale idêntica afirmação para o acordo sobre migrações.
Vale idêntica afirmação para o acordo sobre migrações.
A constrangedora ignorância apontada por este jornal pode estar escondendo algo mais assustador.
Escreve, em seu Facebook, Oliver Stuenkel, um dos mais lúcidos analistas de relações internacionais que o Brasil tem: “Toda a retórica sobre interferência externa não é realmente a respeito de mudança climática por si. De fato, é usada para combater o que [o bolsonarismo] percebe como inimigo: supostas forças globalistas”.
É outro conceito estúpido. Pode-se detestar a globalização, podem-se enxergar nela mil e um defeitos, mas não dá para gritar “parem o mundo que eu quero descer”. O mundo é hoje globalizado.
Se é assim, a cooperação internacional é a única maneira de atenuar os eventuais danos que essa situação provoca.
Preferir, como vem indicando o futuro governo, negociações bilaterais, em vez das multilaterais, é no mínimo improdutivo.
Veja-se o caso das migrações que mais diretamente afetam o Brasil, a dos venezuelanos. Como é que se vai discutir o assunto bilateralmente com Caracas, na qual reina um bando de tarados incompetentes e que fingem não ver o que está ocorrendo?
Impossível. Até um conservador americano, que os Bolsonaros certamente admiram, o senador Marco Rubio, acaba de dizer ao Miami Herald: “Acho que temos uma chance de uma parceria com Brasil, Colômbia, Chile, Argentina e outros na América do Sul para lidar com alguns dos desafios postos pela crise migratória na Venezuela”.
Quer demonstração mais clara de que cooperação internacional não é invenção dos comunistas, caramba?
Clóvis Rossi
Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.
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