quinta-feira, 11 de julho de 2024

CARLOS MELO O novo rumo dos ventos e a democracia brasileira, FSP

 11.jul.2024 às 11h10

Carlos Melo

Cientista político e professor Sênior Fellow do Insper

Eleições no Reino Unido e na França frustraram mais de uma década de avanço do ultraconservadorismo reacionário europeu. Nos Estados Unidos, favorecido pela fragilidade de Joe Biden, Donald Trump lidera a corrida eleitoral, mas a rejeição ao ex-presidente é tamanha que até Kamala Harris, a pouco popular vice de Biden, o derrotaria, como dizem as pesquisas. Na Índia, com resultados aquém das expectativas, Narendra Modi manteve-se no poder, com significativo sentimento contrário ao primeiro-ministro.

Keir Starmer faz seu primeiro discurso como primeiro-ministro britânico - Li Ying - 10.jul.24/Xinhua

Na América Latina, a comunidade internacional e a sociedade boliviana frustraram a tentativa de golpe militar naquele país. No Brasil, o Datafolha indica que 65% dos eleitores paulistanos rejeitariam candidato apoiado por Jair Bolsonaro –a rejeição ao apoio de Lula é 20 pontos mais baixa.

A ultradireita ainda cresce, contudo distante da hegemonia pretendida. É de suspeitar que o extremismo da última década esteja desacelerando. Cedo para crer em "tendência", mas são sinais que exigem atenção. É eloquente que Ciro Nogueira, ex-ministro de Bolsonaro e de elevado instinto de sobrevivência, tenha alertado para os riscos de definhamento da direita radical brasileira, à qual se uniu.

Para vencer a eleição, o Partido Trabalhista inglês fez inflexões ao centro e a setores médios. Na França, o temor ao extremismo do partido Reunião Nacional forjou mobilização popular, diálogo e estratégias combinadas entre as demais forças políticas. Foi surpreendente a vitória da Nova Frente Popular, consolidada como a maior força. Mas, para poder governar —isolando Marine Le Pen e estabilizando o país—, a fragmentada esquerda terá que se ajustar e juntar forças com os centristas de Emmanuel Macron. São Paulo testará se a mudança na atmosfera política é consistente.

O processo é volátil, mas o mais provável é que a disputa se dê entre bolsonarismo e lulismo. Há pouco espaço para alternativas. Pela reeleição, Ricardo Nunes abraçou o apoio de Jair Bolsonaro, que, no velho e ineficaz apelo de "colocar a Rota na rua", lhe impôs o vice; e a linha de campanha, que deve se referenciar no ex-presidente.

Na esquerda, Guilherme Boulos é naturalmente identificado a Lula. Num gesto de força e de liderança políticas, o presidente operou a volta de Marta Suplicy ao PT e definiu a aliança entre a juventude do deputado e a experiência da ex-prefeita. A estratégia reside em ampliar o limitado campo de PSOL e PT, moderar a imagem de Boulos e, para além da feição antibolsonarista, reanimar o espírito de políticas públicas social-democratas e progressistas implantadas por Marta.

0
Boulos, Lula e Marta no lançamento da Pedra Fundamental do Campus Zona Leste da Unifesp - Marlene Bergamo - 29.jun.24/Folhapress

De algum modo, um amplo arco de alianças —maior que simples coligações eleitorais— pode contribuir para ajudar a virar a página da história. Mas não bastará o surrado discurso do "enfrentamento ideológico".

Eleitoral e politicamente mais eficaz será enfrentar problemas concretos da cidade: saúde para uma sociedade em transformação etária; o SUS e os planos de saúde de grande parcela da população; considerar a complexa realidade dos evangélicos; entender o desejo de indivíduos empreenderem, independentemente do Estado; as questões da educação moderna; não se aprisionar à polêmica simplista que contrapõe os direitos humanos à segurança pública, assumindo o desafio de políticas concretas superiores à truculência.

Mais: para superar o ultraconservadorismo, a democracia brasileira deverá dar especial atenção às mulheres, pela centralidade que possuem na vida das famílias. Sobretudo as mulheres pobres, ponto mais agudo da desigualdade nacional, que cumprem múltiplas jornadas de trabalho: cuidam de filhos, maridos e pais; desesperam-se com a violência e miséria; apegam-se e são abraçadas pela religião. Melhor que os homens, sabem a dureza de condições longe de satisfatórias.

Enfim, os fenômenos recentes no mundo podem ser reproduzidos em São Paulo. O desafio será propor soluções práticas e modernas, expressando, com emoção, a luta pela democracia e pelo bem-estar.

Com o engenho e a arte de compreender, agir e se aproveitar de um provável novo rumo dos ventos.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Adianta conversar com evangélicos ou melhor enfrentá-los?, Marcos Augusto Gonçalves, FSP

 O papel relevante que o numeroso grupo de evangélicos passou a assumir na vida pública e na esfera da política brasileira tem gerado situações preocupantes e potencialmente ameaçadoras à saúde de nossa democracia.

A casta de representantes desse universo social, que ocupa postos nos diversos poderes da República e em muitos ramos da economia, tem se destacado pelo ultraconservadorismo reacionário associado à ideia teocrática de que as normas da religião devem presidir a sociedade.

A premissa do Estado laico é desprezada pela maioria desses líderes, alguns deles impostores caricaturais, que vivem da credulidade alheia e se apoiam numa vasta rede de igrejas, não raro baseadas em esquemas teológicos rudimentares e estapafúrdios. Para piorar, tais entidades —e não são apenas as evangélicas, ressalte-se—, desfrutam de benefícios fiscais abusivos e questionáveis.

Imagem de uma grande multidão de pessoas em um evento ao ar livre. A maioria das pessoas está com as mãos levantadas e parece estar participando ativamente do evento. Ao fundo, é possível ver algumas árvores e tendas azuis. Há também uma placa de trânsito visível no meio da multidão.
Evangélicos acompanham apresentação de shows da Marcha para Jesus em palco montado ao lado do aeroporto Campo de Marte, na zona norte de São Paulo - Eduardo Knapp - 8.jun.23/Folhapress

Comento o assunto para levantar um ponto que se tornou recorrente em certo debate no campo progressista: "É preciso conversar com os evangélicos"... A frase sintetiza a ideia de que "precisamos conhecer", "precisamos entender" e "precisamos interagir" com essa massa religiosa ou esses ETs pentecostais simpáticos à ultradireita que andam por aí a nos intrigar ou assombrar.

Essa disposição ao que seria um diálogo produtivo parece conter em seu substrato o pressuposto de que podemos "melhorar" os evangélicos, torná-los mais sensíveis a bons argumentos democráticos.

Em entrevista à Folha, Paul Freston, sociólogo especialista em religião e política, voltou a tocar no assunto. O governo Lula precisaria ser "bilíngue" para tentar ganhar esses setores pelo discurso. Será? Por mais que as intenções se mostrem boas e que de fato seja importante não massificar o pentecostalismo, é difícil não ver uma dose de paternalismo e presunção na ideia de capturar esse segmento pela conversa.

Em sentido contrário, entre fiéis e pregadores evangélicos, os liberais progressistas são vistos como ovelhas desgarradas a contrariar os desígnios de Deus. Vivem em pecado, sob a influência de satanás. Esses sim, precisariam urgentemente ser chamados ao convívio com o Senhor.

É claro que há evangélicos de mente aberta e bem informados, mas esses, na verdade, já se inscrevem no contexto republicano. Conversar com certas lideranças da bancada da Bíblia e seus séquitos intolerantes é o mesmo que tentar encontrar uma língua comum com a ultradireita bolsonarista, a favor do livre acesso a armas, da criminalização do aborto em todas as circunstâncias e do lema "bandido bom é bandido morto". Todos rezam pelo mesmo catecismo reacionário.

Entende-se que a busca do diálogo soe mais razoável e menos beligerante do que o combate ao ideário dessas correntes. Não sei, porém, se mais eficaz.

Evangélicas ou não, forças hostis aos princípios da democracia têm de ser enfrentadas no palco político. É preciso que a sociedade se defenda e levante limites. Os profetas autoritários e moralistas que pretendem ditar como os indivíduos devem se comportar em suas vidas privadas e querem usar a religião como fonte de leis universais precisam ser confrontados no debate público. É imperioso defender os direitos que ainda podem nos livrar do inferno dos teocratas e do grande obscurantismo.