quarta-feira, 10 de julho de 2024

RODRIGO TAVARES - Pode um rei medieval espanhol inspirar os brasileiros?, FSP

 

Em uma das praças principais da histórica cidade de Leão, na Espanha, há um café brasileiro que serve pamonha, pastel de feira e coxinha de frango ao lado da estátua de bronze do rei Afonso IX (1171-1230). O rei ficou conhecido por ter fundado a Universidade de Salamanca, uma das mais antigas do mundo. Por ter expulsado de várias regiões da Espanha a população nativa muçulmana (Califado Almôade). Ficou até conhecido por ter peitado a decisão do Papa de anular os seus dois matrimônios devido à consanguinidade.

área externa de construção, com a inscrição em inglês "eleições europeias - use seu voto"
Sede de Bruxelas do Parlamento Europeu, com fachada alusiva às eleições europeias - Roberto Dias/Folhapress

Para outros é mais reconhecido por ter inventado a democracia parlamentar na Europa, em 1188. Foi ele que convocou a Corte Régia de Leão e firmou a "Decreta", um documento de 17 cláusulas que estabelece um conjunto inovador de regras políticas, jurídicas e sociais com o propósito de manter a justiça e a paz em todo o reino.

Foi a primeira vez que um monarca promoveu a participação de representantes eleitos das cidades e vilas leonesas, o povo, para tomarem decisões políticas, ao mesmo nível da nobreza e do clero. Isso antes da Magna Carta inglesa ou da Assembleia dos Estados Gerais da França convocada pelo rei Filipe IV em 1302. As Cortes de Leão foram um dos primeiros exemplos de parlamento na Europa e o berço do "Estado de Direito" espanhol.

Quase tudo o que foi decretado nas Cortes de Leão foi absorvido, centenas de anos depois, pelos vários ordenamentos jurídicos brasileiros desde 1500. Em Leão estabeleceu-se o habeas corpus, o direito à inviolabilidade do domicílio e do correio e a proibição da expropriação ilegal. Apresentou-se o respeito pelos procedimentos jurídicos e pelas garantias do processo penal. Fortaleceu-se o poder local concedendo-se maior autonomia aos concelhos na gestão de seus próprios assuntos, como administração da justiça e coleta de impostos. O Rei deixou de ter capacidade de decretar a guerra ou a paz sem convocar as Cortes. Atualmente, todos estes preceitos estão, grosso modo, contemplados na Constituição brasileira.

Quando entrei com a minha esposa no café brasileiro para pedir pamonha, a funcionária nos disse que não tinha. A coxinha também não estava pronta e a massa do pastel só chegaria no dia seguinte ("mas não sei a que horas"). Há uma diferença entre a Constituição brasileira e a sua aplicabilidade.

Afonso IX anulou algumas doações que considerava excessivas ou que haviam sido concedidas de forma irregular no reinado de seu pai, Fernando II. Na Idade Média havia quem se beneficiava de doações para aumentar o seu património e ampliar conflitos internos e externos. Houve resistências, mas os nobres acabaram por ceder. O esquema de doações no valor de R$ 6,8 milhões impedirá um ex-presidente de lutar nos tribunais para que possa se candidatar às eleições de 4 de outubro de 2026? Ou haverá eleitores que pensem que ele foi mais esperto do que criminoso?

A "Decreta" também fez inúmeras referências à importância dos homens-bons ("hombres buenos"), indivíduos que desempenhavam um papel importante na vida política e social do reino. Eram reconhecidos pela comunidade por sua sabedoria, integridade ética e compromisso com o bem-estar do reino. Podiam ocupar cargos de liderança em suas comunidades locais, administrando a justiça, coletando impostos e garantindo a ordem pública. A 6 de outubro de 2024 os brasileiros irão escolher os seus "homens-bons" para vereadores e prefeitos. Quantos haverá?

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O documento de Afonso IX também sublinhou a importância de assegurar que a política não seja conduzida aos solavancos. Os princípios norteadores de uma comunidade devem ser respeitados pelos novos incumbentes do poder. Nas suas palavras sob juramento, "respetaré las buenas costumbres que tienen estabelecidas por mis antecesores". 8 de janeiro de 2023?

Mas não podemos exagerar nas comparações. Nem na Espanha nem no Brasil, nem no século 12 nem no 21, a lei escrita é garante da sua efetiva aplicação. Esta semana, os jornais de Leão dão destaque a um caso de corrupção no governo regional com obras públicas sobrefaturadas, enquanto os jornais espanhóis noticiam a evasão fiscal do irmão do premiê espanhol. O Brasil não precisa olhar para a Idade Média para bebericar inspiração jurídica. Mas precisa continuar a enfrentar os complexos problemas estruturais, políticos, sociais, culturais e institucionais que dificultam o cumprimento das regras que têm adotado desde 1988.

Para quem deseja conhecer a Corte Régia de Leão, recomendo uma visita à Basílica de Santo Isidoro, no centro da cidade. Foi no seu claustro que se reuniu o primeiro parlamento. A entrada custa 6 euros. Na saída, ao lado do café brasileiro, pedi a famosa sopa de ajo castellana em um restaurante tradicional, uma receita centenária de Leão consumida desde os tempos de Afonso IX. "Lo siento, pero no hay sopa hoy", me falou o garçom. Pratos tradicionais, tal como as democracias plenas, são cada vez mais raros.


Milei é um provocador, Elio Gaspari, FSP

 Lula perdeu tempo na segunda-feira ao responder às provocações do presidente argentino, Javier Milei, mesmo sem citá-lo. Foi diplomaticamente elíptico, mas, mesmo assim, era isso que Milei queria. O presidente hermano tornou-se uma ausência relevante na reunião do Mercosul em Assunção. Sua ausência teve um peso superior a uma eventual presença. Para um presidente performático, melhor negócio não há.

As relações do Brasil com a Argentina sempre tiveram altos e baixos mas, pela primeira vez, numa das pontas está um provocador interessado em tirar proveito do tumulto. Caso típico de fanático sem causa.

Homem branco de terno preto gesticula com a mão direita
O presidente da Argentina, Javier Milei, durante conferência conservadora em Santa Catarina - Evaristo Sa - 7.jul.24/AFP

O Brasil já se meteu nos assuntos argentinos impedindo que o ex-presidente Juan Perón descesse em Buenos Aires, em 1964. Já a Argentina, nos anos 70, dedicou-se à tarefa impossível de barrar a construção da hidrelétrica de Itaipu. (As duas ditaduras só se entenderam quando colaboraram para sequestrar e assassinar brasileiros e argentinos.)

Lula respondeu a Milei com tintas de cientista político, condenando o que chamou de "nacionalismo arcaico". Gastou seu latim. Guardadas as proporções, Milei precisa de um Lula, como Lula precisa de um Roberto Campos Neto.

Noves fora os aspectos pessoais da dissidência de Milei, o Mercosul tornou-se uma bola de ferro presa ao tornozelo da diplomacia brasileira. O bloco está estiolado a ponto de não conseguir consensos para os comunicados conjuntos da rotina diplomática.

Desde o século passado o Planalto persegue o sonho de um acordo do Mercosul com a União Europeia. O profissionalismo do Itamaraty consegue manter viva uma negociação natimorta, mas a França não quer o acordo e de nada adianta chamá-la de protecionista. (Até porque Lula condena um "nacionalismo arcaico" enquanto seu governo ergue barreiras contra os carros elétricos da China, protegendo montadoras septuagenárias.)

O Uruguai já disse que pretende assinar um acordo comercial com a China. O Brasil não gosta da ideia, mas ela parece a cada dia mais inevitável. Essa é uma questão teoricamente relevante, mas as birras de Milei em torno do Mercosul são ridículas. Ele bloqueia iniciativas de gênero, metas ambientais e até mesmo o funcionamento de dois centros de estudos. Nada disso tem a menor importância, pois os países continuarão funcionando (ou não) à revelia do bloco.

Há aspectos das relações entre a Argentina e o Brasil que independem dos humores dos governantes. O pior que se pode fazer numa situação dessas é fingir não polemizar, indo-se para condenações elípticas. Se o Brasil prefere não cair nas provocações de Milei deve honrá-lo com um respeitoso silêncio. Afinal, se ele acreditava tirar dividendos de uma ida ao Balneário Camboriú para encontrar-se com Jair Bolsonaro, deu com os burros n'água.

Lula foi exaustivamente aconselhado a esquecer Milei, mas sua compulsão falou mais alto e ele acabou aceitando o desafio para ensinar que "Eu acho que quem perde é que não vem". Essa lógica funciona para chefes de Estado convencionais, coisa que Javier Milei não é. Sendo um provocador, ganhou não indo à reunião do Mercosul e ganhará sempre que conseguir chamar a atenção para suas excentricidades.