domingo, 1 de outubro de 2023

Muniz Sodré - Sons do silêncio, FSP

 "As pessoas ficam, as instituições passam." Este penoso ato falho do procurador-geral da República em seu discurso de despedida no STF pode trazer alguma luz também para as ruminações do ministro da Defesa sobre a relutância de militares em saírem de cena. Na insuperável autoapoteose do procurador, o silêncio vestiu capa de super-herói. Se houvesse algum grau de realidade, não faltariam, num ambiente próprio a latinórios, interjeições do tipo "valete et plaudite!" (amém!, assim seja!). O protocolo, porém, foi sóbrio.

Ato falho é uma espécie de fala silenciada, que transparece num equívoco e pode resultar em acerto. Décadas atrás, já pública a intenção da ditadura de devolver o poder aos civis, determinado ministro militar declarou na tevê que "sim, era hora de voltar à caverna". Lapso de língua, inequívoco ato falho freudiano, sujeito a interpretação diversa daquela em que incorreu o procurador.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) realiza, na segunda (25/09/2023), a última sessão comandada pelo atual procurador-geral da República, Augusto Aras; ele deixa o cargo após quatro anos à frente da PGR
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) realiza, na segunda (25/09/2023), a última sessão comandada pelo atual procurador-geral da República, Augusto Aras; ele deixa o cargo após quatro anos à frente da PGR - José Cruz/ Agência Brasil

Esse tipo de deslize, que a psicanálise circunscreve ao singular, ganha alcance coletivo quando o falante se faz porta-voz involuntário de algo mais amplo. Individualmente, a interpretação mostra que o desejo do procurador não era realmente despedir-se. Seu silêncio, amortecedor segundo ele, teria sido o fiel da balança democrática. Mas o desejo de permanecer era conjunturalmente afim ao estado de espírito do grupo militar refratário ao resultado das urnas, conforme o ministro da Defesa.

Questão aberta é a natureza desse grupo: clubes, oficiais de pijamas, colegas de caserna, trambiqueiros, esparsos brucutus na ativa. Numa republiqueta de meia-sola, isso periga constituir esfera de ação superior à da fala. Num país continental, uma das maiores economias do mundo, pagando em dia a dívida externa, a coisa muda de figura. Em suma, não há golpe de Estado sem consentimento americano. Foi assim em 64 no Brasil, assim foi em 73 no Chile.

Mas há subgolpes (em 68, um deles) e sempre em suspenso a ameaça de rupturas democráticas. A velha guarda palaciana, que pontua a história do país com intervenções, acha-se dona da bola. Na dividida se conhece o ciúme do jogador. Uma queda de braços: guerra mesmo não há, o ministro da Defesa é árbitro conciliador em campo, administrando humores e negociando orçamentos.

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Na crise orgânica de consenso das classes dirigentes, o que realmente se defende com estatuto ministerial é o status-quo bem-nutrido contra a imprevisibilidade dos precarizados de tudo. Daí não sai desenvolvimento nacional pacífico. A verdadeira paz passa hoje por formas moleculares de uma guerra social, da qual, em seu silêncio operativo, nada parecem saber ministros e generais. Uma coisa apenas é certa em golpismos e atos falhos: os donos da bola fazem o diabo para permanecer no gramado.


Lembra do Telmo?, Ruy Castro - FSP

 Telmo Martino morreu há 10 anos, no dia 3 de setembro. O silêncio da mídia fala tanto da nossa desmemória quanto do fato de que, no Brasil, o passado é um caixão sem alça, a ser levado nos ombros. Depois de ter sido, de 1971 a 1986, o colunista mais lido da imprensa paulistana —seu veículo era o Jornal da Tarde, no auge—, Telmo tem sido ignorado até em reportagens retrospectivas.

Fomos amigos por 45 anos. Conheci-o em 1968, na revista Diners, dirigida por Paulo Francis, aqui no Rio. A revista era um house organ para os assinantes do cartão, que a esnobavam, mas disputada pelos que viam nela a herdeira da lendária Senhor (1958-1964). Mês sim, mês não, Telmo fazia crítica de livros, implacável para com os medalhões. No dia a dia, no entanto, era a alma e a arma secretas da revista: compunha com Francis os insuperáveis títulos e subtítulos dos artigos e retocava o estilo de colaboradores como Joel Silveira, Glauber Rocha, Armando Nogueira.

No fim do ano, Francis foi preso no AI-5 e o Diners extinguiu a revista. Telmo foi ser ghost writer do colunista Daniel Más no Correio da Manhã, consagrando Daniel. Em 1971, o JT lhe ofereceu uma coluna assinada, e lá se foi Telmo para São Paulo, onde, com humor e sagacidade, criou seu panteão de personagens: os belos e deuses e os jecas e fakes, eleitos por ele. Isso lhe valeu amores e ódios, por fim reduzidos nos anos 90 a uma triste indiferença, provocada, em parte, pelo cansaço do próprio Telmo.

Não haverá futuro para ele. Telmo será esquecido, na razão direta de que, com exceções, as pessoas que ele endeusou ou demoliu também já estão sendo. Talvez porque fossem miragens que, pró ou contra, só existissem na sua coluna.

Ele pressentia esse fim. Certa vez, me telefonou: "Ruyzito, aqui é Telmo Martino, vivendo seus últimos dias". E eram mesmo. Mas que só chegariam em 2013 —e esse telefonema foi em 2006.

Foto (por Avani Stein), capa de revista (por David Zingg) e cartões de visita de Telmo Martino nos anos 80
Foto (por Avani Stein), capa de revista (por David Zingg) e cartões de visita de Telmo Martino nos anos 80 - Heloisa Seixas

Demétrio Magnoli Um Congresso de 11, FSP (definitivo)

 O longo voto de Rosa Weber pela descriminalização do aborto apresenta-se, quase inteiramente, como um discurso parlamentar. A agenda definida pela magistrada para o Supremo –drogas, marco temporal, aborto– forma uma pauta de deliberações apropriada ao Poder Legislativo. Por aqui, o STF produz legislação enquanto o Congresso dedica-se a distribuir verbas de emendas a clientelas eleitorais e a indicar ministros ou diretores de estatais.

A alegação dos juízes supremos de que apenas interpretam a Constituição não resiste nem mesmo a um escrutínio superficial. Interpretar a Constituição é derrubar o que não pode ser feito; legislar é decidir regras positivas sobre o que deve ser feito. Weber determinou o período de aborto descriminalizado (12 semanas), os magistrados procuram consenso interno sobre o peso exato da maconha de uso pessoal, Fachin elabora regras específicas para atribuição de terras aos indígenas.

Fachada da sede do STF (Supremo Tribunal Federal), em Brasília
Fachada da sede do STF (Supremo Tribunal Federal), em Brasília - Gabriela Biló - 3.mai.23/Folhapress

O STF embarcou no veleiro do neoconstitucionalismo, doutrina jurídica que, enfraquecendo a separação dos Poderes, atribui aos magistrados a missão de reformar a sociedade a partir de uma interpretação extensiva dos princípios constitucionais. O posto de timoneiro é ocupado por Barroso, um expoente da doutrina. Na equipe, Weber funciona como navegadora.

O neoconstitucionalismo equivale a uma declaração de guerra dos juízes contra Parlamentos conservadores ou reacionários que resistem à expansão de direitos sociais. Na sua fúria legiferante, o STF enxerga-se –e é enxergado– como representação do estrato mais progressista da sociedade. O problema é que, como os juízes não foram eleitos, sua campanha de reforma social tende a gerar consequências contraproducentes.

As regras de origem judicial são leis fracas, sujeitas a bruscos retrocessos. Na Itália, o aborto é um direito forte porque foi decidido pelo Parlamento e confirmado por plebiscito popular. Nos EUA, foi um direito fraco, estabelecido pela Suprema Corte em 1973 e revogado pelo mesmo tribunal, agora com maioria conservadora, ano passado. Ao celebrar o avanço dos juízes sobre prerrogativas parlamentares, os progressistas sacrificam o futuro no altar do presente.

Ruth Bader Ginsburg, icônica ex-magistrada progressista americana, identificou o equívoco. O crescimento explosivo do Movimento Pró-Vida, explicou, foi uma reação política ao voto da Suprema Corte de 1973. Concluiu daí que o caminho certo exigiria a articulação da maioria social para consagrar o direito ao aborto em legislação emanada do Congresso. Na prática, os progressistas que confiam suas pautas a juízes reformadores estão renunciando ao dever de persuadir os cidadãos.

No Brasil, os partidos de esquerda insistem nesse tipo de abdicação: Lula e Dilma recusaram-se a defender em campanha eleitoral o direito ao aborto ou a descriminalização da maconha. Na raiz do silêncio encontra-se a tese de que a maioria da sociedade é atavicamente conservadora –e, que, portanto, precisaria ser resgatada do inferno de suas próprias convicções pela mão providencial dos juízes.

Sondagens de opinião indicam maiorias contrárias à descriminalização do aborto e do uso recreativo de maconha. O Congresso espelha, de certo modo, essas inclinações gerais. Contudo, ideias arraigadas sobre tais temas podem mudar –com a condição de que as lideranças políticas progressistas tenham a coragem de reorganizar os termos do debate público. Impera, porém, o medo, que se traduz pela transferência da responsabilidade ao STF.

Quem ganha são os conservadores e, especialmente, os reacionários. Nos EUA, legislaturas estaduais engajam-se na criminalização irrestrita do aborto. Aqui, tenta-se reverter o direito à união homoafetiva. Nas eleições, ressoará o discurso do voto contra o "governo dos juízes". Um Congresso de 11 togados não reinventará o Brasil.