sábado, 24 de setembro de 2022

Muniz Sodré - Ferro-velho ao mar, FSP

 

Tem-se dado pouca atenção à saga vexaminosa do porta-aviões São Paulo, proibido de ancorar em portos estrangeiros.

Mas isso traz à mente uma canção de mais de meio século atrás, inicialmente também proibida, de Juca Chaves: "Brasil já vai a guerra/ Comprou um porta-aviões/Um viva pra Inglaterra/ De oitenta e dois bilhões/ Mas que ladrões". Foi em 1960, quando entrou em operação o Minas Gerais, primeiro no país. A gravação só foi liberada pela censura um ano depois.

O porta-aviões São Paulo - Rob Schleiffert - 23.dez.13/Wikimedia

Misto de músico, crítico e humorista, o compositor divertia seu público com sátiras, geralmente sobre circunstâncias nacionais. O porta-aviões, considerado obsoleto pelos britânicos após a Segunda Guerra, tinha sido vendido assim mesmo ao Brasil, passou alguns anos de retrofit em um estaleiro e finalmente aqui aportou para gáudio geral: "Comenta o Zé Povinho/ Governo varonil/ Coitado, coitadinho/ Do Banco do Brasil/ Quase faliu". Juca marcava em cima.

A questão por trás da sátira partia naquela época, como hoje, de leigos em assuntos militares, porém militantes do senso comum: o porquê daquele colosso de segunda mão num país às voltas com fome endêmica e precariedade de capital para investimento em infraestrutura vital.

Uma resposta técnica indicaria a necessidade de exercícios navais e treinamento para uma eventualidade bélica. Uma ponderação pragmática poderia contrapor a carência maior de naves menores, capazes de proteger o litoral ou assegurar a soberania da Amazônia. A realidade mostrou que, em suas mais de cinco décadas de funcionamento, o único conflito a que assistiu o Minas Gerais foi interno: "É meu, diz a Marinha / É meu, diz a Aviação/ Revolução!". Juca, sempre preciso.

Finalmente vendido para desmanche como ferro-velho, o porta-aviões foi substituído pelo São Paulo, comprado dos franceses e aqui glorificado como a maior belonave do hemisfério Sul. Após três anos do sonhado funcionamento, um pesadelo continuado: incêndio no sistema de vapor com vítimas fatais, retorno ao estaleiro por cinco anos, novo incêndio na eletricidade com vítimas e o diagnóstico final de "maior fiasco da Marinha brasileira".

Reprisando o anterior, o São Paulo foi vendido a um cemitério turco, mas até isso deu errado: com dez toneladas de amianto a bordo, não consegue atracar e, rebocado, vaga pelos mares como cadáver incômodo em busca de um jazigo improvável. Uma alegoria realizada do país famélico, política e moralmente envenenado, pária internacional.

Hype agora, aliás, pauta midiática, é fabricar submarino, ninguém fala mais em porta-aviões. Mas Juca continua atual: "E o povo sem comida/ escuta as tais lorotas/ dos patriotas".


Hélio Schwartsman - Quão malignos são os políticos?, FSP

 "Com grande poder vêm grandes responsabilidades", já ensinava Stan Lee em Homem-Aranha. Bryan Caplan, um autor de que gosto bastante, transforma o princípio de Parker numa diretriz ética e o aplica a políticos, concluindo que eles são malignos.

É que, por possuírem grande poder, deveriam agir sempre com máxima responsabilidade, o que incluiria fazer o "due diligence" de todas as suas propostas, analisando-as cientificamente e calculando seu impacto, antes de transformá-las em políticas públicas. Só que eles quase nunca fazem isso, preferindo embarcar gostosamente nos vieses de seus eleitores e reforçá-los. Ao agir assim, eles violam o princípio de Parker, o que permite a Caplan caracterizá-los como malignos.

Annette Schwartsman

Em "How Evil Are Politicians?", uma coletânea de microensaios, Caplan, que é professor de economia na Universidade George Mason, explica por que faz restrições éticas a políticos e mostra algumas das instâncias em que sua miopia interessada nos leva a situações subótimas. E aí há material para agradar e desagradar a todos. Caplan é um ferrenho defensor das fronteiras abertas e do pacifismo, mas um crítico contumaz dos investimentos públicos em educação superior e do salário mínimo, entre várias outras posições que chocam o senso comum.

Caplan, para quem não conhece, é uma combinação de autor libertário com agente provocador, com muito bom humor e talento para a estatística. A sensação que temos ao lê-lo é a de que um vulcano desembarcou na Terra e começou a escrever desenfreadamente. Podemos até discordar de seus raciocínios, mas a lógica com que os esculpe é sempre admirável.

Um exemplo: a livre imigração teria o potencial de dobrar a produção de riqueza no planeta, mas só 3% da população terrestre é imigrante. Por quê? Porque governantes restringem a entrada de estrangeiros e o fazem apenas para agradar os vieses de seus eleitores. Isso é maligno.

Concerto.com.br Erik Satie

 


Texto de Camila Fresca na Revista CONCERTO de julho de 2015

Nascido no distrito de Pont-l’Evêque, em Honfleur, Satie teve as primeiras aulas de piano ainda criança. Mudou-se para a capital francesa em 1878 e com 14 anos ingressou no Conservatório de Paris. Um de seus primeiros empregos foi como pianista do famoso cabaré Le Chat Noir, onde teria se apresentado ao gerente, em 1887, como “gymnopedista”, pouco antes de escrever suas famosas Gymnopédies para piano (acredita-se que o nome venha do antigo festival grego Gymnopaedia, dedicado ao deus Apolo, durante o qual jovens nus dançavam ao som de flautas e liras). Mais tarde, ele também se apresentaria como “phonometrician” (“medidor de sons”). No Chat Noir, o humorista Alphonse Allais o apelidaria de “Esotérik Satie”. Já nesta época, escreveu peças curtas para piano, impregnadas do estilo do cantochão medieval. E foi também nesses anos que conheceu Debussy, com quem estabeleceria uma longeva amizade.

Em 1891, Satie ingressou na então recém-criada Ordem Cabalística da Rosa-Cruz. Mais tarde, fundou sua própria igreja, L’Eglise Métropolitaine d’Art de Jésus Conducteur (Igreja Metropolitana de Arte de Jesus como Guia), da qual era o único membro. O compositor viveu em Montmartre até 1898, quando se mudou para um modesto quarto em Arcueil, subúrbio industrial de Paris, onde permaneceu pelo resto da vida. Caminhava nove quilômetros todos os dias para ir a Montmartre – onde continuava ganhando a vida tocando em cabarés. Aos 36 anos, decidiu retomar seus estudos musicais do zero e matriculou-se na Schola Cantorum, de onde saiu com um diploma de contraponto três anos mais tarde.

Em 1911, o nome de Satie começou a ganhar projeção quando Maurice Ravel mostrou ao público algumas de suas obras. Àquela altura, ele compunha muito, escrevendo cerca de sessenta peças para piano ao longo de três anos e dando início a sua fase “humorística”, com obras como Prelúdios flácidos para um cãoEmbriões ressecados e Três distintas valsas do precioso enfadado – uma paródia maldosa das Valsas nobres e sentimentais de Ravel. 

Alguns anos depois ele chamou atenção novamente, então através de Jean Cocteau, que lhe encomendou uma peça para uma nova coreografia dos Balés Russos. Nascia Parade (1917), sua obra-prima, com música inovadora e original, que incorporava à partitura sons de máquina de escrever, sirene e tiro de pistola. No momento de redigir o programa para o espetáculo, Apollinaire criou um neologismo, “surrealismo”, palavra que mais tarde designaria todo um movimento artístico.

Em 1920, Satie escreveu outra de suas obras mais importantes, Sócrates, drama sinfônico para quatro personagens e pequena orquestra, com textos de três dos Diálogos de Platão. Também nessa época fez uma experiência, junto com o jovem Darius Milhaud, de musique d’ameublement (ou música ambiente). A música seria como uma mobília, preenchendo o ambiente, fazendo parte dos ruídos naturais e os levando em conta, sem se impor. Na época, porém, tal ideia pareceu mais um gesto excêntrico do compositor. Em 1925, após anos de excessos com a bebida e uma pleurisia, faleceu, no dia 1º de julho, depois de vários meses no hospital onde recebeu os últimos sacramentos da Igreja católica.

Satie era considerado por seus contemporâneos um sujeito excêntrico e irreverente. Além de compor, também gostava de escrever e fazer caricaturas, inclusive dele mesmo. Era famoso por possuir doze ternos idênticos. Além disso, fazia coleção de guarda-chuvas e cachecóis, detestava sol e, durante uma época, alimentou-se apenas de comida branca, como arroz, ovo, coco, peixe, nabo e queijo.

Grande parte de sua música tem um caráter suave, sem fidelidade a qualquer estética. As melodias são melancólicas e hesitantes, e as composições, em geral, curtas. À época, a música de Satie foi apreciada por poucos e desprezada pela maioria dos compositores e dos críticos. Seus detratores alegavam fragilidade musical, tanto por uma suposta formação deficiente (chegou a ser chamado de músico amador diversas vezes) quanto pelos recursos técnicos empregados em obras que se revelariam miniaturas musicais com escalas pouco convencionais, harmonias estranhas e ausência de virtuosismo instrumental.

Satie foi um dos precursores do Minimalismo, abolindo estruturas complexas e sofisticadas, com absoluto despojamento e simplicidade da forma. Exemplo disso foi a peça Vexations (1893), formada por 32 compassos que se repetem 840 vezes. Sua produção compreende principalmente obras para piano, mas há também peças orquestrais, de câmara e para voz solo. “A obra de Satie é desconcertante – chega à plena provocação – com suas linhas e seus ritmos simples, seus encadeamentos harmônicos inesperados, a extrema originalidade de sua linguagem que escapa a uma análise tradicional, o que punha em fúria certos ‘profissionais’ de seu tempo”, afirmou a estudiosa Michèle Reverdy. 

Embora pouco prestigiado nos círculos convencionais, Satie foi figura relevante no cenário de vanguarda parisiense do começo do século XX. Além do Minimalismo, foi precursor de movimentos artísticos como o teatro do absurdo. Despertava admiração nos jovens compositores, e acredita-se que mesmo Debussy e Ravel tenham sido influenciados por sua música despojada e irreverente.

Em 1923, foi formada a Escola de Arcueil (em referência ao bairro em que Satie morava), da qual faziam parte Henri Pawl-Pleyel, Roger Desormière, Maxime Jacob e Henri Sauguet, discípulos sem nenhuma posição estética definida, apenas uma declarada admiração pela sobriedade e pela simplicidade de seu mestre. Satie foi igualmente inspirador – uma espécie de “padrinho” – para o Grupo dos Seis (alusão aos russos do Grupo dos Cinco), vanguarda que reagiu contra a influência do Romantismo e do Impressionismo, formada pelos músicos Darius Milhaud, Arthur Honegger, Francis Poulenc, Georges Auric, Louis Durey e Germaine Tailleferre. Também John Cage declarou sua admiração e a influência que sofreu do músico. Nas palavras de Roland de Candé, “Satie era, ao mesmo tempo, subversivo e modesto”. “Tinha por demais o espírito de contradição para ser um epígono e humor demais para se levar a sério fundando uma escola.”

Erik Satie [Reprodução]
Erik Satie [Reprodução]

Linha do tempo

1866
Nasce no distrito de Pont-l'Evêque, em Honfleur, França

1880
Inicia as aulas no Conservatório de Paris

1887
Passa a trabalhar como pianista no cabaré Le chat noir

1888
Escreve as três Gymnopédies

1891
Ingressa na Ordem Cabalística da Rosa-Cruz

1898
Instala-se em Arcueil, subúrbio industrial de Paris

1902
Aos 36 anos, decide retomar os estudos musicais e matricula-se na Schola Cantorum

1911
O nome de Satie começa a ganhar projeção quando Ravel mostra ao público suas obras

1917
Por influência de Jean Cocteau, escreve o balé Parade

1920
Escreve o drama sinfônico Sócrates

1923
É formada a Escola de Arcueil, por jovens compositores que tinham em comum a 
admiração pela música de Satie

1925
Falece no dia 1º de julho
 Concerto. com