sábado, 14 de novembro de 2020

Partidos fortalecem coronelismo eleitoral com dinheiro público, FSP

 14.nov.2020 às 6h37

BRASÍLIA

Quase 40 mil candidatos nas eleições deste domingo (15) financiaram suas campanhas com dinheiro público que receberam com o "carimbo" nominal de um cacique político local, sintoma de uma espécie de coronelismo eleitoral que ainda caracteriza parte da política nacional.

Em vez de os partidos direcionarem a verba de campanha diretamente aos candidatos, como é o normal, em alguns casos eles promoveram uma triangulação. Direcionaram o dinheiro a alguns poucos candidatos, que ficaram responsáveis por escolher a quem repassar parte da verba, e quanto repassar.

Foi o caso do candidato à reeleição à Prefeitura de São Bernardo do Campo, Orlando Morando (PSDB), que recebeu para sua campanha R$ 3,5 milhões da verba eleitoral de PSDB, Podemos, Cidadania, Avante, PP e Patriota.

Desse total, ele havia repassado até a semana passada R$ 2,2 milhões a quase 400 outros candidatos a vereador na cidade, um batalhão de apoiadores que transformou o prefeito tucano no campeão de triangulação de verba eleitoral de todo o país.

É o que mostra levantamento, feito em parceria pela Folha, pelo projeto 72horas —que acompanha a aplicação do dinheiro público de campanha.

O prefeito de São Bernardo do Campo, Orlando Morando (PSDB), candidato à reeleição - Adriano Vizoni/Folhapress

O principal objetivo da triangulação do dinheiro público de campanha é fortalecer os caciques regionais dos partidos, que solidificam entre os candiatos da sigla o papel de comando, além de fidelizar de forma mais explícita o apoio dos vereadores à sua campanha.

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A prática se soma a outras adotadas pelos partidos no uso da verba pública de campanha que privilegiam o status quo político e deixam pouco espaço à renovação.

Por meio de sua assessoria, Morando afirmou que os partidos que o apoiam optaram por enviar os recursos para a sua campanha com o objetivo de facilitar o controle da aplicação da verba e que os critérios de redistribuição dependeram do valor repassado por cada partido e da estratégia de campanha e estrutura de cada candidato. "Uns preferem investir em redes sociais, logo necessitam de menos recursos, outros em material e mobilização."

Morando disse não ter pedido nenhuma contrapartida dos quase 400 candidatos a vereador a quem destinou recursos. "A única coisa que esperamos é que levem a sua proposta à população, respeitando a pandemia, e nossa coligação possa eleger a maior quantidade possível de vereadores. Temos uma eleição no meio de uma pandemia, e não uma pandemia no meio da eleição".

Ao todo, R$ 52 milhões da verba nacional pública de campanha (cerca de 2,5% do declarado pelos candidatos) foi repassada de forma indireta a candidatos, por meio de caciques regionais --e não pelo partido em suas três esferas, nacional, estadual ou municipal.

Outros R$ 35 milhões de doações feitas por pessoas físicas, ou seja, dinheiro privado, seguiram o mesmo caminho. Caíram na conta de determinado candidato, que depois repassou o dinheiro a outros politicos de sua órbita eleitoral.

O segundo no topo do ranking de quem mais distribuiu a verba pública recebida foi o deputado federal Dagoberto (PDT), candidato a prefeito de Campo Grande. Ele recebeu R$ 1,7 milhão do partido. E fez mais de 100 repasses para mais de 40 candidatos a vereador na capital de Mato Grosso do Sul.

Procurado, Dagoberto não se manifestou.

Um dos candidatos que recebeu recurso público de campanha por meio de uma triangulação foi o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), beneficiado com propaganda impressa feita pela campanha de Marcelo Crivella (Republicanos), candidato a prefeito do Rio.

Três dias após a Folha revelar o uso dos R$ 22 mil, Carlos Bolsonaro publicou em suas redes sociais um texto afirmando que tentou devolver a verba, mas que, como não conseguiu, iria fazer uma doação em igual valor para a caridade.

Apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter sancionado o Fundo Eleitoral de R$ 2 bilhões, o discurso da família é contrário ao uso da verba. O presidente chegou, inclusive, a gravar vídeo recomendando seus apoiadores a não votar em candidato que usa o fundo.

“O ideal era termos uma regra já definida anteriormente, com transparência, para saber como será feita a distribuição e para quem. E deveria ser igualitária, mas nisto o partido tem a chamada autonomia partidária. E interessante destacar que temos recebido reclamações de candidatos que até agora não receberam nada do fundo”, diz Luciano Santos, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral .

Uma das idealizadoras do 72horas, a jornalista Fefa Costa faz menção às doações empresariais, fonte de vários escândalos de corrupção e proibidas desde 2015 por decisão do Supremo Tribunal Federal.

"Conseguimos observar em diversas candidaturas que, apesar do dinheiro ser público, ele ainda segue as regras de distribuição de quando o financiamento de candidaturas tinha as empresas como origem. Ou seja, é preciso orientar partidos e candidaturas para essa nova realidade e provocar a mudança nessas regras."

O dinheiro dos fundos públicos que abastecem as campanhas, que é de cerca de R$ 3 bilhões neste ano, é distribuído aos partidos, de modo geral, na proporção do desempenho que eles tiveram nas últimas eleições gerais.

As cúpulas partidárias têm que tornar públicos os critérios de repasse aos candidatos, uma exigência da lei aprovada no Congresso Nacional, mas que, em boa parte dos casos, é cumprida apenas de forma burocrática.

Reportagem da Folha mostrou, por exemplo, que quatros siglas apresentaram à Justiça Eleitoral atas idênticas de supostas reuniões em que esses critérios teriam sido definidos, indicando uma possível simulação apenas para cumprimento da norma legal.

Outra característica é o grande contingente de candidatos que têm que fazer campanha sem qualquer suporte financeiro dos partidos. Reportagem da Folha do final de outubro relatou que os partidos políticos haviam direcionados até aquela data recuros para uma parcela ínfima dos candidatos —menos de 1% deles concentrava 80% de todo o dinheiro dos Fundos Eleitoral e Partidário.

Embora esse percentual vá se elevar até o final do segundo turno e a prestação de contas final dos candidatos e partidos, ele certamente será muito baixo. Cabe às cupulas partidárias a decisão exclusiva sobre quem receberá, quando e quanto. E, tradicionalmente, os dirigentes, aliados mais próximos e os políticos já estabelecidos são os principais beneficiados.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Contra teimosia não há vacina, Ricardo Viveiros, OESP

 Desde que surgiram, os humanos polemizam. Cada um tem sua opinião e, boa parcela, acredita que é a correta. Desse eterno confronto nasceram importantes transformações. O debate ilumina o contraditório, traz diferentes visões de um mesmo tema.

São poucos os que têm a consciência de ouvir, pensar e, com sabedoria, manter ou não sua ideia sobre determinada tese. Alexandre Herculano, jornalista, historiador e poeta português, disse: “Não me envergonho de corrigir meus erros e mudar as opiniões, porque não me envergonho de raciocinar e aprender.” O francês Blaise Pascal, filósofo e escritor, já havia dito algo semelhante quase 200 anos antes.

O que difere o defensor do cientificamente comprovado do apenas teimoso? O primeiro depende de fatos concretos, enquanto o outro é movido por vaidade, pretensão, fervor. Enquanto o interlocutor fala, ao invés de ouvir e pensar, apenas busca como irá contradizer e impor sua tese. Inexiste escuta ativa.

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Claro que são diferentes as motivações que embasam as teorias dos teimosos, transitam desde convicções religiosas, passando por conceitos de vida até chegar em ideologias políticas. Sempre concebidas e argumentadas de modo radical. Não é sequer uma paixão, como optar por um time de futebol. É algo fundamentado em uma cega certeza que não permite diálogo.

Sigmund Freud, judeu-austríaco criador da Psicanálise, alertava: “Alemão não é teimoso, teimoso é quem teima com um alemão.” Justa ou injusta, a referência serve para alcançar o que significa ser renitente às mudanças do livre pensar. Nestes tempos de pandemia, há demonstrações de uma fase que começou bem antes da crise sanitária. Uma “Cultura do Ódio”, expressão que cunhei e trouxe a público em artigo publicado em setembro de 2019. A questão política dividiu as pessoas em dois lados, os contra e os a favor. E isso acontece em vários pontos do Planeta, potencializado pela tecnologia digital. Qualquer coisa é motivo de acirrada polêmica.

Pessoas morrendo e a questão não é salvá-las, é a ideologia da origem da vacina: chinesa de esquerda ou britânica de direita. Tudo é muito novo, natural que se desconfie da eficácia. Além do que, os pesquisadores alertam para reações ainda imprevisíveis.

Caso uma grande parcela da população não for vacinada, a Covid-19 trará novas ondas de contaminações e mortes. Vale lembrar que como o terraplanismo, arautos do anticientificismo e seus poderosos apoiadores resgataram do passado doenças que estavam dominadas pelas vacinas. A turma antivacina tem alimentado a volta de sarampo, rubéola, coqueluche e tuberculose como já se registra também na Europa e nos EUA.

Segundo pesquisa da revista “Nature” em 19 países, 71,5% das pessoas estão dispostas a tomar a vacina, desde que as agências sanitárias declarem seguro. A se confirmar o estudo, realizado em julho passado, países com grande confiança em governos centralizados como China, Coreia do Sul e Cingapura, bem como países de renda mediana como Brasil, Índia e África do Sul, estão entre os com população predisposta a se vacinar.

O corajoso povo brasileiro aprendeu a lutar contra as adversidades, doenças crônicas causadas por má gestão pública. Nesse caso, a única imunização é o voto. Enquanto isso, melhor deixar morrer a teimosia, do que perder mais vidas. Sem xenofobia doutrinária e ignorância explícita. Que venha a vacina, não importa a ideologia da origem, mas sim a eficácia.

*Ricardo Viveiros, jornalista, professor e escritor é autor, entre outros livros, de A Vila que Descobriu o BrasilPelos Caminhos da Educação e Justiça Seja Feita

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Fernando Schüler Estamos mesmo dispostos a não tratar nossos adversários como inimigos?, FSP (definitivo)

 Joe Biden fez um apelo interessante em seu discurso de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para “restaurar a decência e defender a democracia”.

Observe-se como mesmo um político moderado e boa gente como Biden tropeça. Se um lado “organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da democracia, o que sobra exatamente para o outro lado?

Acho que foi apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua história o credencia para ajudar a “curar a América” do diálogo de surdos em que se transformou a política americana. Vamos finalmente testar a tese de que basta que o exemplo venha de cima e tudo se ajeita.

Não acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse processo.

Apenas um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso.

Estamos tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um quadro em que tudo ganhou dramaticidade.

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Há muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à direita o interiorano, menos culto e tradicional. A clivagem entre “globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação, baixa renda).

Em grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador. As razões do crescimento da polarização política dizem respeito a uma mudança de eixo do debate público em boa medida determinada pelo impacto da revolução tecnológica sobre a democracia.

Ocorre que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do debate político. Temas de identidade passaram a definir muito da pauta política e, na direção contrária, a defesa da tradição. Questões por definição menos abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas tradicionais da politica institucional.

Pode-se discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o começo da vida ou papel da família.

Além da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital: a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva, na do vizinho.

John Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco efetiva diante da barreira cultural.

Talvez é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época, tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política.

Vai aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição casualmente corresponda ela mesma à própria democracia.

Um pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma grande contribuição aí.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.