sábado, 12 de setembro de 2020

Angela Alonso Sete de Setembro ofereceu duas nações distintas, FSP

 A pandemia acanhou o tropel de cavalos e o rufar de tambores do 7 de Setembro. Atrapalhou também o lado menos ufanista, restrito a manifestação modesta. A disputa pelo significado da nação migrou da rua para as telas.

A nação, Benedict Anderson argumentou, é “comunidade imaginada”, que ajunta classes, etnias, partidos sob mesma bandeira. O problema é que os cidadãos não a imaginam da mesma maneira.

Nem os governos. Cada qual visa impor sua visão da nacionalidade sobre as concorrentes. Pode ser na marra ou no voto. As democracias preferem a urna para decidir o que a sociedade foi, é e deve ser. A derrubada de monumentos mostra que o passado está tão em disputa quanto o presente e o futuro.

O litígio aqui remonta à Independência, mas não carece aspirar ácaro de arquivo para dar com distintas nações imaginadas. A semana ofereceu duas.

Uma veio no vídeo edificante do secretário da Cultura. A solenidade, a penumbra, a música evocam uma nação representada por sua elite política. Lá estão bustos dos imperadores e da quase-imperatriz e uma foto do marechal Floriano Peixoto.

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Nesta linha seguiu o pronunciamento do presidente, elencando militares como “heróis nacionais”: os defensores armados da monarquia contra invasores, os pracinhas da FEB e os “milhões de brasileiros” ativos no golpe de 1964. O Exército é a joia desta nação, vigilante contra os inimigos da pátria. Nazismo e fascismo servem de álibi para igualar comunismo a corrupção, caos e totalitarismo.

O presidente, que se apresenta como militar, surge como o protetor da democracia, definida como “liberdade”. Não a de todos os nacionais, mas dos que representa: “Somos uma nação temente a Deus, que respeita a família e que ama a sua pátria.”

Como gesto de “tolerância”, incluiu negros, índios e imigrantes. Não como cidadãos ativos do presente, entraram pela contribuição subordinada no passado, para a formação cultural —os “costumes nacionais”— e étnica —a “miscigenação”— da nação. Uma pátria liberal, anticomunista, hierarquizadora, religiosa, familista e armada.

Outra nação surgiu na data cívica pela voz do ex-presidente, contraponto preferido do bolsonarismo. Lula a apresentou composta por “mulheres”, “indígenas”, “quilombolas”, “trabalhadores”, “excluídos”, “pobres, pretos, pessoas vulneráveis que o Estado abandonou”. Sua nação é o povo, que “não quer comprar revólveres (...), quer comprar comida”.

Os inimigos também são outros: “banqueiros e especuladores” —daí a defesa de imposto sobre fortunas—, “milicianos” e liberais. A nação lulista é desenvolvimentista e crítica das privatizações. Aspira por “Estado de bem-estar social”, com ciência, artes, universidades e proteção ambiental. Nação democrática, que visa Estado “justo, igualitário” e tolerante.

Confluências entre as duas nações só de face. Ambas são ciosas da soberania nacional, mas o bolsonarismo carrega bandeiras norte-americanas enquanto o outro lado prefere a companhia de África e América Latina. Liberdade, para o presidente, se garante à mão armada; para o ex, é de expressão e organização política. No vídeo de Mario Frias, como no de Lula, comparecem os “heróis anônimos”, mas um evoca os soldados, o outro, as vítimas das balas perdidas.

“Nossa historia precisa ser contada”, conclui Frias. De fato, e aí se incluem a remota e a recente. A narrativa vencedora nas eleições de 2018 foi a da equivalência entre petismo e bolsonarismo, embora as nações que projetam sejam tão diferentes. Na verdade cada um tem seu time, como esclareceu a máscara flamenguista do vice-presidente, na celebração oficial. A nação una é apenas imaginária.

Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

A brutal realidade dos fatos, Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo

 Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo

12 de setembro de 2020 | 05h00

Em 1982, durante meu doutoramento em Nova York, produzi anticorpos para a subunidade regulatória da proteína que gera o movimento nos músculos. A notícia chegou ao Japão e fiquei orgulhoso quando Setsuro Ebashi (1922-2006), o pai da bioquímica japonesa, pediu uma amostra dos anticorpos. Fiz o pacote e enviei. Passado um mês, Ebashi escreveu dizendo que um aluno havia repetido meu experimento e o anticorpo não reconhecia a subunidade regulatória, mas outra subunidade. Refiz o experimento, obtive o mesmo resultado, enviei ao Japão. Eles repetiram e informaram que eu estava enganado. Refiz, eles refizeram, e nada de concordância. Finalmente Ebashi decidiu que, para resolver o impasse, eu deveria ir a Tóquio fazer o experimento com o aluno.

Quando medida usando o teste rápido da Wondfo, a porcentagem de pessoas no Brasil que possui anticorpos contra o SARS-CoV-2 caiu
Quando medida usando o teste rápido da Wondfo, a porcentagem de pessoas no Brasil que possui anticorpos contra o SARS-CoV-2 caiu Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Cheguei inseguro e comecei a trabalhar lado a lado com meu colega. O experimento demorava dois dias. No fim do segundo dia, ficou claro que meu colega japonês havia errado o alinhamento do filme de raios X, o que o levou a uma interpretação errada do resultado. No início da noite, Ebashi nos chamou na sua sala e perguntou sobre o resultado. O aluno disse que o resultado parecia favorecer minha conclusão, mas que talvez houvesse uma outra interpretação. Seco, Ebashi nos mandou de volta ao laboratório para repetir o experimento. O resultado foi o mesmo, voltamos à sala, e o aluno disse que parecia que eu estava certo, mas... Não terminou o raciocínio, fomos de volta para a bancada. Esse ciclo se repetia a cada dois dias. Aos poucos fui ficando amigo do meu competidor, e nas visitas ao escritório de Ebashi comecei a tentar fazer o meio de campo, justificando que talvez ele poderia até ter razão. E a reação de Ebashi: o que ele queria ouvir? 

Após duas semanas, decidimos por outra estratégia, seríamos secos. Entramos na sala e Ebashi perguntou como tinha ido o experimento. Meu amigo disse que o resultado era o mesmo. Ebashi perguntou, então, quem tem razão? Meu amigo me olhou e disse, ele. Se voltando para mim, Ebashi perguntou, e você o que acha? Que tenho razão. Se voltou para meu amigo novamente. E quem está errado? Eu, disse ele. E quem está certo? Eu, respondi. Parecia um filme do Kurosawa. Ebashi se levantou, ordenou que nos cumprimentássemos. Assunto encerrado afirmou, vamos jantar. E nos levou pela primeira vez ao elegante clube dos professores da Universidade de Tóquio. Após muitas doses de saquê disse que em ciência precisamos aceitar a brutal realidade dos fatos (“the brutal reality of facts”), sem meios termos, sem rodeios, sem dourar a pílula, ou tentar salvar as aparências. Só assim, disse ele, nos livramos do peso dos erros, que são inevitáveis na vida de um cientista. Só com esse desapego vocês podem ser livres para errar novamente.

Eu me lembrei desse episódio quando esta semana recebi um e-mail de Cesar Victora, o principal epidemiologista do grupo de Pelotas, contando os resultados da última rodada da pesquisa nacional da prevalência de anticorpos na população brasileira (EPICOVID-19). A brutal realidade dos fatos é que, quando medida usando o teste rápido da Wondfo, a porcentagem de pessoas no Brasil que possui anticorpos contra o SARS-CoV-2 caiu desde a última medida (os números serão divulgados nos próximos dias). Essa queda, rápida e significativa, que já tinha sido observada em algumas cidades, agora se tornou realidade no Brasil como um todo. Como o número de pessoas infectadas pelo coronavírus só aumenta durante a pandemia, esse resultado demonstra de maneira cabal que essas medidas não correspondem ao número total de pessoas já infectadas no Brasil desde o início da pandemia. 

Além disso, demonstra que os anticorpos medidos por esse teste aparecem no sangue das pessoas logo após a infecção e desaparecem rapidamente. Como o objetivo da EPICOVID-19 é exatamente medir a fração das pessoas que já haviam sido infectadas ao longo da pandemia no Brasil, os cientistas estavam usando um método inadequado para medir esse fenômeno. É como se estivessem tentando medir a distância entre dois pontos usando uma balança, em vez de um metro. Mas lembrem: era o único teste disponível no início da pandemia e o erro é o motor do progresso científico.

Você pode imaginar que esse é um problema técnico, que afeta somente um grupo de cientistas. Mas não, essa descoberta afeta nossa vida. Todos os resultados obtidos usando esses testes precisam ser reinterpretados. Indivíduos que tiveram resultados negativos nos testes rápidos, antes eram informados que não haviam sido infectados. Agora sabemos que eles podem ter sido infectados no início da pandemia, foram positivos por alguns meses ou semanas, e se tornaram negativos. A Prefeitura de São Paulo, que vem usando esses testes para medir quinzenalmente a quantidade de pessoas já infectadas desde 21 de junho, e tem reportado resultados que oscilam ao redor de 10%, agora precisa explicar o que esses resultados significam. O mesmo precisa ser feito com a pesquisa que estima o número de infectados no Rio Grande do Sul. 

Esses mesmos testes foram usados para medir quantas crianças já foram infectadas na cidade de São Paulo, e esse dado foi usado para justificar a decisão de manter as escolas fechadas. Essas políticas educacionais precisam ser reavaliadas. E finalmente sabemos que não existe, por enquanto, medida confiável de quantas pessoas já foram infectadas no Brasil. O número é seguramente muito maior que os 4,2 milhões de pessoas que já foram testadas e apresentaram testes positivos.

*BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

Marcos Mendes Populismo e a captura do Orçamento, FSP

 

O Orçamento de 2021 não prevê verbas para o Renda Brasil, o programa de transferência de renda ampliado, prometido como substituto do auxílio emergencial. O presidente da República rejeitou o plano de fusão do abono salarial, do salário-família e do seguro-defeso, que garantiriam a ampliação das verbas de R$ 33 bilhões para R$ 57 bilhões. Argumentou que “não tiraria dos pobres para dar aos miseráveis”.

É um equívoco. Em estudo do CDPP (Centro de Debates de Políticas Públicas), do qual tive a satisfação de participar (que propõe política distinta e mais eficiente que o esboço conhecido do Renda Brasil), mostra-se que o abono e o salário-família são incapazes de afetar as estatísticas de pobreza e desigualdade, ao contrário do Bolsa Família, que diminui ambas significativamente.

Já o seguro-defeso tem frágil controle e paga o benefício ao dobro de pessoas que a Pnad Contínua registra como pescadores, sendo objeto de fraudes e uso político.

Nada mais lógico que redirecionar os recursos para um formato similar ao do Bolsa Família, potencializando a redução da pobreza com aperfeiçoamentos no desenho dos benefícios.

Todo o mundo tem um parente que considera pobre e que perderia o abono ou o salário-família. Acredite: há pessoas muito mais pobres que seu parente e que nada recebem. Política pública precisa ser feita com evidência quantitativa abrangente, e não com impressões colhidas nas conversas de fim de semana.

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Por serem focados no indivíduo, e não na família, aqueles três programas muitas vezes erram o alvo da pobreza. Beneficiam, por exemplo, o jovem de classe alta e que acabou de entrar no mercado de trabalho, com salário mais baixo. Não diferenciam o pescador que vive sozinho daquele que sustenta cinco filhos, pagando o mesmo para ambos.

Quem for efetivamente pobre continuará a ser atendido por um novo e ampliado programa de assistência, como o proposto pelo CDPP.

O Bolsa Família, objeto de elogios internacionais (ainda que passível de aperfeiçoamentos), surgiu da fusão de vários programas (bolsa-escola, o cartão-alimentação, o bolsa-alimentação e o auxílio-gás).

Também à época foi objeto de muita crítica, principalmente da esquerda, que achava um erro focalizar a atenção nos mais pobres e queria programas universais. Curioso que o antípoda do PT faça a mesma crítica populista.

Se essa discussão for superada, optando-se pela fusão dos programas, outra questão se impõe. O abono salarial já tem despesas comprometidas até junho de 2022, devido a um cronograma defasado de pagamentos. Como ele representa R$ 20 bilhões do orçamento do novo programa, não haveria recursos disponíveis até lá.

Esse problema não existiria se o Executivo e o Legislativo não tivessem, em seguidas decisões nos últimos anos, escolhido tirar dos pobres e miseráveis para dar às corporações.

Em um ano de Orçamento duríssimo, o Ministério da Defesa vai receber R$ 4,2 bilhões a mais. Em 2016, foi criada a “Bolsa Advogado Público” —os honorários de sucumbência—, que consomem R$ 700 milhões por ano. A opção por não regulamentar o teto salarial do setor público leva outros R$ 2 bilhões por ano, somente no governo federal, principalmente com benefícios à magistratura.

Em 2019, o Congresso aprovou PEC que aumenta o montante das emendas obrigatórias em R$ 5 bilhões por ano, para financiar projetos de qualidade e mérito duvidosos. A emenda constitucional 98, de 2017, incorporou à folha da União servidores de ex-territórios, levando mais R$ 2 bilhões por ano.

Não fossem essas e outras escolhas questionáveis, financiaríamos uma gradual ampliação da atenção aos mais pobres e melhoraríamos a qualidade do gasto público, com justiça distributiva e respeitando o teto de gastos.

Nossa crise fiscal é resultado do casamento do populismo com a captura do Orçamento por quem tem poder político.

Marcos Mendes

Pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'