A pandemia acanhou o tropel de cavalos e o rufar de tambores do 7 de Setembro. Atrapalhou também o lado menos ufanista, restrito a manifestação modesta. A disputa pelo significado da nação migrou da rua para as telas.
A nação, Benedict Anderson argumentou, é “comunidade imaginada”, que ajunta classes, etnias, partidos sob mesma bandeira. O problema é que os cidadãos não a imaginam da mesma maneira.
Nem os governos. Cada qual visa impor sua visão da nacionalidade sobre as concorrentes. Pode ser na marra ou no voto. As democracias preferem a urna para decidir o que a sociedade foi, é e deve ser. A derrubada de monumentos mostra que o passado está tão em disputa quanto o presente e o futuro.
O litígio aqui remonta à Independência, mas não carece aspirar ácaro de arquivo para dar com distintas nações imaginadas. A semana ofereceu duas.
Uma veio no vídeo edificante do secretário da Cultura. A solenidade, a penumbra, a música evocam uma nação representada por sua elite política. Lá estão bustos dos imperadores e da quase-imperatriz e uma foto do marechal Floriano Peixoto.
Nesta linha seguiu o pronunciamento do presidente, elencando militares como “heróis nacionais”: os defensores armados da monarquia contra invasores, os pracinhas da FEB e os “milhões de brasileiros” ativos no golpe de 1964. O Exército é a joia desta nação, vigilante contra os inimigos da pátria. Nazismo e fascismo servem de álibi para igualar comunismo a corrupção, caos e totalitarismo.
O presidente, que se apresenta como militar, surge como o protetor da democracia, definida como “liberdade”. Não a de todos os nacionais, mas dos que representa: “Somos uma nação temente a Deus, que respeita a família e que ama a sua pátria.”
Como gesto de “tolerância”, incluiu negros, índios e imigrantes. Não como cidadãos ativos do presente, entraram pela contribuição subordinada no passado, para a formação cultural —os “costumes nacionais”— e étnica —a “miscigenação”— da nação. Uma pátria liberal, anticomunista, hierarquizadora, religiosa, familista e armada.
Outra nação surgiu na data cívica pela voz do ex-presidente, contraponto preferido do bolsonarismo. Lula a apresentou composta por “mulheres”, “indígenas”, “quilombolas”, “trabalhadores”, “excluídos”, “pobres, pretos, pessoas vulneráveis que o Estado abandonou”. Sua nação é o povo, que “não quer comprar revólveres (...), quer comprar comida”.
Os inimigos também são outros: “banqueiros e especuladores” —daí a defesa de imposto sobre fortunas—, “milicianos” e liberais. A nação lulista é desenvolvimentista e crítica das privatizações. Aspira por “Estado de bem-estar social”, com ciência, artes, universidades e proteção ambiental. Nação democrática, que visa Estado “justo, igualitário” e tolerante.
Confluências entre as duas nações só de face. Ambas são ciosas da soberania nacional, mas o bolsonarismo carrega bandeiras norte-americanas enquanto o outro lado prefere a companhia de África e América Latina. Liberdade, para o presidente, se garante à mão armada; para o ex, é de expressão e organização política. No vídeo de Mario Frias, como no de Lula, comparecem os “heróis anônimos”, mas um evoca os soldados, o outro, as vítimas das balas perdidas.
“Nossa historia precisa ser contada”, conclui Frias. De fato, e aí se incluem a remota e a recente. A narrativa vencedora nas eleições de 2018 foi a da equivalência entre petismo e bolsonarismo, embora as nações que projetam sejam tão diferentes. Na verdade cada um tem seu time, como esclareceu a máscara flamenguista do vice-presidente, na celebração oficial. A nação una é apenas imaginária.