Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo
12 de setembro de 2020 | 05h00
Em 1982, durante meu doutoramento em Nova York, produzi anticorpos para a subunidade regulatória da proteína que gera o movimento nos músculos. A notícia chegou ao Japão e fiquei orgulhoso quando Setsuro Ebashi (1922-2006), o pai da bioquímica japonesa, pediu uma amostra dos anticorpos. Fiz o pacote e enviei. Passado um mês, Ebashi escreveu dizendo que um aluno havia repetido meu experimento e o anticorpo não reconhecia a subunidade regulatória, mas outra subunidade. Refiz o experimento, obtive o mesmo resultado, enviei ao Japão. Eles repetiram e informaram que eu estava enganado. Refiz, eles refizeram, e nada de concordância. Finalmente Ebashi decidiu que, para resolver o impasse, eu deveria ir a Tóquio fazer o experimento com o aluno.
Cheguei inseguro e comecei a trabalhar lado a lado com meu colega. O experimento demorava dois dias. No fim do segundo dia, ficou claro que meu colega japonês havia errado o alinhamento do filme de raios X, o que o levou a uma interpretação errada do resultado. No início da noite, Ebashi nos chamou na sua sala e perguntou sobre o resultado. O aluno disse que o resultado parecia favorecer minha conclusão, mas que talvez houvesse uma outra interpretação. Seco, Ebashi nos mandou de volta ao laboratório para repetir o experimento. O resultado foi o mesmo, voltamos à sala, e o aluno disse que parecia que eu estava certo, mas... Não terminou o raciocínio, fomos de volta para a bancada. Esse ciclo se repetia a cada dois dias. Aos poucos fui ficando amigo do meu competidor, e nas visitas ao escritório de Ebashi comecei a tentar fazer o meio de campo, justificando que talvez ele poderia até ter razão. E a reação de Ebashi: o que ele queria ouvir?
Após duas semanas, decidimos por outra estratégia, seríamos secos. Entramos na sala e Ebashi perguntou como tinha ido o experimento. Meu amigo disse que o resultado era o mesmo. Ebashi perguntou, então, quem tem razão? Meu amigo me olhou e disse, ele. Se voltando para mim, Ebashi perguntou, e você o que acha? Que tenho razão. Se voltou para meu amigo novamente. E quem está errado? Eu, disse ele. E quem está certo? Eu, respondi. Parecia um filme do Kurosawa. Ebashi se levantou, ordenou que nos cumprimentássemos. Assunto encerrado afirmou, vamos jantar. E nos levou pela primeira vez ao elegante clube dos professores da Universidade de Tóquio. Após muitas doses de saquê disse que em ciência precisamos aceitar a brutal realidade dos fatos (“the brutal reality of facts”), sem meios termos, sem rodeios, sem dourar a pílula, ou tentar salvar as aparências. Só assim, disse ele, nos livramos do peso dos erros, que são inevitáveis na vida de um cientista. Só com esse desapego vocês podem ser livres para errar novamente.
Eu me lembrei desse episódio quando esta semana recebi um e-mail de Cesar Victora, o principal epidemiologista do grupo de Pelotas, contando os resultados da última rodada da pesquisa nacional da prevalência de anticorpos na população brasileira (EPICOVID-19). A brutal realidade dos fatos é que, quando medida usando o teste rápido da Wondfo, a porcentagem de pessoas no Brasil que possui anticorpos contra o SARS-CoV-2 caiu desde a última medida (os números serão divulgados nos próximos dias). Essa queda, rápida e significativa, que já tinha sido observada em algumas cidades, agora se tornou realidade no Brasil como um todo. Como o número de pessoas infectadas pelo coronavírus só aumenta durante a pandemia, esse resultado demonstra de maneira cabal que essas medidas não correspondem ao número total de pessoas já infectadas no Brasil desde o início da pandemia.
Além disso, demonstra que os anticorpos medidos por esse teste aparecem no sangue das pessoas logo após a infecção e desaparecem rapidamente. Como o objetivo da EPICOVID-19 é exatamente medir a fração das pessoas que já haviam sido infectadas ao longo da pandemia no Brasil, os cientistas estavam usando um método inadequado para medir esse fenômeno. É como se estivessem tentando medir a distância entre dois pontos usando uma balança, em vez de um metro. Mas lembrem: era o único teste disponível no início da pandemia e o erro é o motor do progresso científico.
Você pode imaginar que esse é um problema técnico, que afeta somente um grupo de cientistas. Mas não, essa descoberta afeta nossa vida. Todos os resultados obtidos usando esses testes precisam ser reinterpretados. Indivíduos que tiveram resultados negativos nos testes rápidos, antes eram informados que não haviam sido infectados. Agora sabemos que eles podem ter sido infectados no início da pandemia, foram positivos por alguns meses ou semanas, e se tornaram negativos. A Prefeitura de São Paulo, que vem usando esses testes para medir quinzenalmente a quantidade de pessoas já infectadas desde 21 de junho, e tem reportado resultados que oscilam ao redor de 10%, agora precisa explicar o que esses resultados significam. O mesmo precisa ser feito com a pesquisa que estima o número de infectados no Rio Grande do Sul.
Esses mesmos testes foram usados para medir quantas crianças já foram infectadas na cidade de São Paulo, e esse dado foi usado para justificar a decisão de manter as escolas fechadas. Essas políticas educacionais precisam ser reavaliadas. E finalmente sabemos que não existe, por enquanto, medida confiável de quantas pessoas já foram infectadas no Brasil. O número é seguramente muito maior que os 4,2 milhões de pessoas que já foram testadas e apresentaram testes positivos.
*BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS
Nenhum comentário:
Postar um comentário