quinta-feira, 9 de abril de 2020

Novos poderes podem ajudar BC a reduzir pânico dos juros do coronavírus, FSP

Senado entende mal medida que pode ajudar BC a reduzir juros que governo paga

Em tempos de epidemia fome, discutir os novos poderes que o Congresso pode dar ao Banco Central parece indiferença. Mas:
  1. Trata-se de oferecer novos meios para o BC agir em tempos de calamidade sanitária e econômica;
  2. É possível que, assim, o BC possa reduzir o custo da dívida do governo (baixar taxas de juros);
  3. Talvez o BC possa tirar do caminho algum entulho que trava a oferta de empréstimos;
  4. O BC teria instrumentos para evitar algum acidente maior no sistema financeiro, coisa que torna qualquer crise econômica ainda mais dramática.
Do que se trata? Uma emenda constitucional, já aprovada na Câmara, permite que o BC compre títulos do governo de médio e longo prazos, além de títulos de dívida privada. Falta a aprovação do Senado, onde certos parlamentares têm feito críticas disparatadas ao projeto. A emenda é de fato uma reviravolta grande nas finanças públicas brasileiras, coisa de tempos de guerra e colapso, portanto apropriadas (em teoria).
Para começar pelo menos enrolado, em princípio: o BC poderá adquirir títulos do Tesouro de prazo mais longo. Quando há mais gente mais interessada em emprestar para o governo, mais títulos se compram: o preço dos títulos sobe, a taxa de juros cai (é a mesma coisa). Quando mais gente refuga os títulos, os juros sobem.
Talvez o BC venha a comprar títulos públicos apenas a fim de conter a disparada recente das taxas de juros mais longas, uma ação emergencial, um sedativo.
Mas, talvez, o BC possa reduzir as taxas de qualquer prazo de vencimento, por bem mais tempo.
taxa de curto prazo (a Selic, prima do DI) deve baixar mais. Quem sabe desça a perto de zero, pois estamos sob risco de depressão e de inflação na prática nula. A fim de evitar a alta de juros de longo prazo, seria necessária ação extraordinária do BC: compra de títulos de prazo mais longo (dois, sete, dez anos, digamos), que não pagariam taxas muito maiores do que a de curto prazo (do que a Selic).
O governo, pois, acabaria se financiando com empréstimos de curto prazo, com juros bem menores. No entanto, mesmo entre doutos entendidos há dúvidas sobre os planos do BC: agir para atenuar pânicos, paliativo passageiro, ou “achatar a curva” por mais tempo (como se escrevia nesta coluna no domingo)?
Recentemente, as taxas de juros dos títulos com vencimento mais longo subiram de modo selvagem. Neste ano, a diferença entre a taxa de um ano e a de sete anos andava pela casa de pouco mais de dois pontos percentuais até o início de março. Na semana final do mês, a diferença chegou a ir além de cinco pontos.
No atacadão do mercado de dinheiro, é uma diferença brutal, sinal de grande pânico. As taxas de um ano caíram, as mais longas subiram (mais gente preferiu comprar títulos de curto prazo, mais gente preferiu vender os de longo prazo).
Em resumo simples, muita gente está com medo do futuro, embora outros percalços expliquem parte do movimento. Assim, todas as taxas mais longas da praça financeira, do mercado de dinheiro aos bancos, ficam mais altas (isto quando existe negócio).
A ação do Banco Central pode, no final das contas, baratear os empréstimos para o Tesouro (se “achatar a curva” por mais tempo). Na prática e indiretamente, o BC em parte financiaria o governo nestes tempos de calamidade. A despesa com juros cairia. A dívida pública aumentaria um pouco menos (vai aumentar muito, de qualquer modo, dados o aumento de gasto e a queda medonha da receita).​
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Quanto valorizamos cada vida? Atila Iamarino, FSP

Quem faz a economia são pessoas, não o contrário; quem salva vidas são pessoas

  • 39
Uma das primeiras evidências da cultura humana com a qual nos identificamos é o cuidado com outros. Cuidado que vem de longa data, como fósseis dos nossos parentes e ancestrais primatas mostram. Como um Homo erectus adulto que morreu há quase 2 milhões de anos banguela, só com alguns caninos na boca, que passou anos se alimentando de comida macia que alguém provavelmente providenciava.
Shanidar 1 foi um humano neandertal adulto que viveu mesmo tendo perdido pelo menos parcialmente a audição, o olho esquerdo, parte de um braço e do movimento das pernas. Ele não chegaria à idade adulta se não contasse com a ajuda dos outros. Há muito tempo escolhemos fazer nosso destino. É o que todos que fazem o juramento de Hipócrates ainda votam por fazer, adiar a morte cuidando dos vivos. Essa é a fronteira que estendemos a cada avanço da medicina combinada com a ciência.
Agora estamos em um momento da nossa história no qual essa vocação da humanidade será posta à prova mais uma vez. Agora as armas que criamos enfrentando pandemias passadas podem fazer da Covid-19 um surto muito menos letal. Graças às vacinas que desenvolvemos nos séculos 18 e 19, conseguimos extinguir um dos vírus mais letais que nos atormentava por séculos e matou milhões, o da varíola, e sabemos qual pode ser nossa saída. Inventamos os respiradores e muitos cuidados das UTIs nas décadas de 1950 e 1960 para lidar com o lado debilitante da pandemia de poliomielite que paralisou os músculos de tantas crianças. Desenvolvemos remédios antivirais para salvar vidas que seriam perdidas para a Aids, outra pandemia que ainda está em curso, embora mais lento.
Foi essa cultura que nos trouxe até 2020 com a maior população humana que o mundo já viu, mas com a menor proporção de humanos desnutridos que o mundo já viu. À base de muita ciência e de muito crescimento econômico e às custas de muito uso de recursos naturais. É do alto desse conforto que enfrentamos uma versão turbinada de uma velha ameaça. Uma pandemia de um vírus respiratório capaz de se espalhar tão rapidamente e para tantas pessoas que nos fez encolher a maioria das economias.
Não estamos despreparados como antes. Não encaramos uma punição divina ou uma maldição, encaramos a Covid-19, um surto de pneumonia aguda causado por uma infecção. Quem causa esse mal-estar não são maus ares, é um vírus, o Sars-CoV-2. Um organismo tão pequeno que não usamos nossos olhos para ver sua coroa de espinhos, a corona. Usamos microscópios. E não dependemos de divinação para saber o que vai acontecer nem precisamos perder milhões de vidas para saber disso. Temos um dom — ou maldição para alguns —que nossa consciência e a inteligência humana nos dá, o dom de antever o futuro.
Dependemos de epidemiologia, da infectologia, da história, de números, projeções e dados demográficos que mostram uma pandemia que dobra de casos a cada 3 a 7 dias e uma demanda: respiradores e cuidado médico. Sem isso, sua mortalidade pode mais do que dobrar de 1% a 2% dos doentes para mais de 4% —especialmente por causa da sua consequência mais mordaz, a proporção de um a dois entre cada dez doentes que precisam do cuidado médico. Seria o suficiente para incapacitar qualquer sistema de saúde do mundo se a pandemia seguisse seu curso natural.
É usando esse dom que decidimos nos isolar em escala mundial para diminuir a velocidade com que a pandemia se espalha. E é esse mesmo dom de antever problemas que nos indica o que vem pela frente, uma crise econômica de mesma escala. Seja pela parada planejada e voluntária ou pela parada imposta pela incapacitação e morte das pessoas, como enfrentou a Itália, país que segundo o banco Goldman Sachs pode chegar a uma dívida de 160% do seu PIB até o começo de 2021 se continuar parada. Com base nesse tipo de estimativa, dos bilhões ou trilhões de dólares ou euros gastos para se manter vidas ou de lucro por manter vidas, é que começamos a ver uma pressão econômica para retomar a vida.
Para alguns é uma questão bem prática. O dinheiro para qualquer ação, incluindo manter os hospitais funcionando, precisa vir de algum lugar. E conforme conseguimos conter o vírus, essa pressão econômica se torna cada vez mais forte. Para outros, como este biólogo que vê onde chegamos como uma conquista cultural e científica, além de econômica, trata-se de uma outra escolha. Não da falsa dicotomia entre vidas e manter economia funcionando, mas como uma escolha real entre agirmos como seres pensantes, conscientes e culturais, como agentes do nosso destino, ou como vítimas de uma tragédia natural, dos arroubos dos deuses econômicos.
Caminhamos para a escolha entre agir de acordo com esse conhecimento ou não. Quem fez o juramento de Hipócrates já escolheu. Profissionais da saúde seguem o caminho da vida, tão empenhados em defendê-la que se isolam das famílias, arriscam-se em condições precárias e enfrentam uma onda que sabem que vai virar um tsunami. Vamos usá-los como os soldados modernos que mandamos para o sacrifício com um desejo de "boa sorte" enquanto empilhamos as vítimas nas portas dos hospitais em nome dos deuses econômicos que já nos abandonaram neste ano? Ou vamos assumir o caminho de agentes do nosso destino e escolher manter o isolamento das pessoas, medida que sabemos que funcionam e que demandam muito menos desses profissionais essenciais?
Como alguém que acredita no poder transformador da ciência, eu prefiro dar o tempo necessário para que ela possa salvar mais vidas. Prefiro respeitar quem já fez sua escolha, garantindo a saúde física e mental de quem garante a minha saúde nos hospitais. Cuidar do próximo é uma capacidade humana que agora podemos escolher exercer para milhões de pessoas. Assim como podemos deixar a pandemia correr seu curso natural, saturar o atendimento e reverter as chances de sobreviver à uma pandemia ao estado de cada um por si que tivemos por toda nossa história.
Trata-se de escolher incluir ou não a maioria dos doentes, independentemente de idade ou pré-condições de saúde que não eram uma sentença de morte até 2019, dentro do sistema de cuidado que criamos e do qual desfrutávamos até ontem. Quem faz a economia são pessoas, não o contrário. Quem salva vidas são pessoas. Priorizemos pessoas.​
Atila Iamarino
Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia