terça-feira, 7 de abril de 2020

Alvaro Costa e Silva Vão trabalhar, vagabundos!, FSP

De novo na moda, o insulto acordava o ator Wilson Grey, que fez mais de 250 filmes

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A figura de perfil clássico consagrada por Wilson Grey (1923-1993) em mais de 250 filmes era a mesma da vida real: bigode fino, cabelos gomalinados, sapato de duas cores, blusão de voal, terno e gravata nas ocasiões especiais. Entre um set e outro, ele desfilava sua magreza pelos becos internos da Cinelândia e tardes de páreos e apostas no hipódromo da Gávea.
Nem sempre foi assim. Nos tempos das vacas ainda mais magras do que ele, faltava-lhe tudo —o que dizer da elegância? Mas lhe sobrava picardia para se defender trabalhando como oficce-boy, entregador de farmácia, bicheiro, garçom na zona do Mangue. Bom de taco, virava-se na sinuca, jogando a valer dinheiro.
Ao chegar ao cinema, havia acumulado experiência para qualquer papel. Quando lhe chamaram para interpretar um apontador do jogo do bicho, em "Amei um Bicheiro" (1952), o fez tão bem que quase foi preso pela polícia numa filmagem de rua. Sua glória foi a do ator coadjuvante: "Nunca beijei a mocinha no final da fita". Na época em que atuou como escada (dando as dicas para o parceiro comediante brilhar) nas chanchadas da Atlântida, chegou a rodar mais de dez filmes por ano. Era conhecido como Take One: gravou, pode mandar copiar que ficou bom. Se bobeassem, roubava a cena.
Mas por que estou falando do Wilson Grey a essa altura do furdunço viral e global? É que um amigo me perguntou se eu sabia o que era coliving, o novo conceito de moradia compartilhada. Quando carregava bandejas no Mangue, Grey morava num coliving, que ainda não tinha esse nome besta.
Eram sórdidas hospedarias, onde dormir numa cama era luxo demais. O jeito era sentar numa cadeira e apoiar-se com os braços numa corda esticada, até o dono do negócio aparecer e derrubar todo mundo no chão, aos gritos de "Vão trabalhar, vagabundos!".
Assim agem aqueles que só pensam na economia, não na pandemia.
José Lewgoy e Wilson Grey em cena do filme “Engraçadinha” (1981), de Haroldo Marinho Barbosa, baseado em obra de Nelson Rodrigues
José Lewgoy e Wilson Grey em cena do filme “Engraçadinha” (1981), de Haroldo Marinho Barbosa, baseado em obra de Nelson Rodrigues - Reprodução
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

Domingo eu almocei duas vezes,FSP

Como há mal no mundo, um deus onisciente, onipotente e benevolente não existe

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Domingo passado eu almocei duas vezes. Fi-lo porque comer é gostoso e para me contrapor ao jejum anticoronavírus convocado pelo presidente Jair Bolsonaro e por lideranças evangélicas. Se existe um deus com as características apregoadas pelas principais religiões monoteístas, então a culpa pela epidemia e o sofrimento que ela causa é toda dele —e parece inútil apelar para sua misericórdia.
O problema do mal, que já abordei neste espaço, é filosófico e, ao que tudo indica, foi levantado pela primeira vez por Epicuro (341 a.C.-270 a.C.). Numa formulação mais moderna e técnica, o argumento reza: se há um deus onisciente, onipotente e benevolente, então não existe mal. Ora, há mal no mundo.
Portanto, um deus onisciente, onipotente e benevolente não existe.
A forma lógica do raciocínio, "modus tollens", é impecável. Se as premissas são verdadeiras, a conclusão necessariamente também o é. Daí que, para esboçar uma resposta, é preciso negar a onipotência/onisciência de deus, ou sua benevolência ou a existência do mal.
Teólogos e filósofos teístas experimentaram um pouco de tudo. Especialmente entre os cristãos, é comum tentar resolver o imbroglio refugiando-se no livre-arbítrio humano —que não deixa de ser uma limitação do poder divino. Outra saída popular é jogar tudo para o além. A justiça divina se realiza mesmo é na próxima vida, na qual cada um receberá o que de fato merece. Assim, o que vemos hoje como mal não passa de uma ilusão de momento, que será sanada na eternidade.
Ainda que engenhosas, nenhuma dessas réplicas parece muito satisfatória. A solução mais econômica e elegante, creio, é aceitar a conclusão lógica de que não existe nenhum criador com as características que as religiões monoteístas lhe atribuem. A vantagem adicional desse caminho é que podemos comer à vontade e responsabilizar com mais veemência governantes pelas decisões que tomam.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".