terça-feira, 7 de abril de 2020

Em reunião, Bolsonaro e Mandetta expõem divergências, e ministro se recusa a assinar decreto, FSP

Presidente cita estudo sobre hidroxicloroquina, e ministro diz não haver protocolo seguro

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BRASÍLIA
Em reunião ministerial nesta segunda-feira (6) no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta (Saúde) expuseram divergências sobre o uso do remédio hidroxicloroquina em pacientes com coronavírus.
Luiz Henrique Mandetta durante entrevista no Ministério da Saúde
Luiz Henrique Mandetta durante entrevista no Ministério da Saúde - Pedro Ladeira/Folhapress
As diferenças de opinião a respeito do uso do medicamento já apareciam em declarações públicas de ambos. Enquanto o presidente sempre enaltece o remédio, também usado para tratar malária, Mandetta é mais ponderado.
Nesta segunda, em dado momento da reunião, Bolsonaro disse que havia conversado com especialistas que defendiam o uso do remédio em estágio inicial da doença. Bolsonaro citou um estudo da operadora Prevent Senior e do Hospital Albert Einstein que envolve o uso do medicamento em pacientes.
O ministro da Saúde, por sua vez, disse que a pesquisa citada ainda não havia sido publicada e defendeu que ainda não há protocolos seguros sobre o seu uso. O presidente cobrou um protocolo sobre a substância durante a pandemia.​
Depois da reunião, Mandetta foi levado a uma sala para assinar um decreto a respeito do uso da substância, mas se negou a endossá-lo, como ele próprio disse em entrevista à noite.
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Segundo relatos à Folha, o documento prevê que profissionais de saúde poderão usar o medicamento em si próprios caso julguem necessário.
O decreto foi elaborado por médicos que defendem o tratamento com a substância. Entre eles, está Luciano Azevedo, que ajudou a intermediar junto a bolsonaristas um encontro da imunologista Nise Yamaguchi, também defensora da hidroxicloroquina, com Bolsonaro nesta segunda.
De um modo geral, avaliam ministros, a reunião ministerial serviu para Bolsonaro reforçar sua autoridade. O presidente disse que está sob ataque de adversários, reclamou de governadores e da imprensa e pediu união de seus auxiliares.
Bolsonaro frisou que a palavra final sobre as medidas de combate à pandemia será dele.
Segundos relatos, o chefe do Executivo disse que, no passado, deixou a equipe muito livre para tomar decisões. Mas afirmou que, agora, diante da atual crise, ele quer ser informado em detalhes sobre o que cada pasta planeja.
Em dado momento, o presidente direcionou a fala ao ministro Paulo Guedes (Economia) e insistiu que ele e Mandetta precisavam encontrar um ponto de equilíbrio entre a saúde e a economia.
Apesar de Bolsonaro não ter indicado que vai demitir o ministro da Saúde, aliados avaliam que ele cobrou do auxiliar medidas concretas que prevejam a retomada de atividades nos próximos meses com segurança para a população.
No final do encontro, Mandetta disse que está no governo para contribuir, em um aceno ao presidente.
Ministros, no entanto, estavam receosos com a reunião porque Bolsonaro chegou a dar sinais de que planejava substituir Mandetta por um nome técnico que fosse defensor da utilização da hidroxicloroquina.
Integrantes do chamado núcleo moderado do governo, que inclui militares, conversaram nesta segunda desde cedo com o presidente, na tentativa de demovê-lo da ideia de demitir o chefe da Saúde no curto prazo.
Em conversas reservadas, Bolsonaro chegou a dizer que a situação estava insustentável e que o chefe da Saúde não contava mais com a sua confiança.
À noite, depois da reunião ministerial, porém, Mandetta afirmou que vai permanecer no cargo. "Vamos continuar enfrentando o nosso inimigo, que tem nome e sobrenome, Covid-19. Temos uma sociedade para lutar e proteger, médico não abandona paciente e não vou abandonar", disse, em entrevista.

“Hoje foi um dia que rendeu muito pouco o trabalho do ministério. Teve gente limpando gaveta, pegando as coisas. Até as minhas gavetas", completou Mandetta.
Pessoas próximas consideram o presidente imprevisível e, por isso, buscam alternativas para a Saúde. O objetivo é, novamente, encontrar um nome favorável ao uso da hidroxicloroquina.
A ideia inicial de Bolsonaro era exonerar o auxiliar apenas em junho, para não correr o risco de ser responsabilizado sozinho caso o sistema de saúde entre em colapso durante a pandemia.
O núcleo moderado do Palácio do Planalto defende que, caso o presidente substitua Mandetta, escale um médico com um currículo respeitável, que ajude a reduzir um eventual desgaste público com a saída do ministro.
Sem a presença de Mandetta, o presidente almoçou com os quatro ministros palacianos e com o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS).
O parlamentar, cotado para o posto e defensor da hidroxicloroquina e do que Bolsonaro chama de isolamento vertical, tem ajudado o presidente em uma eventual transição da pasta. Além deles, também estava presente no encontro a médica Nise Yamaguchi.
Yamaguchi, que tem o apoio do grupo ideológico, passou a ser apontada pelo entorno de Bolsonaro como um dos possíveis para substituir Mandetta, caso ele seja demitido.

Outro nome que conta com a simpatia de Bolsonaro é o do cardiologista Otávio Berwanger. Ele esteve com o presidente na semana passada em reunião com médicos no Palácio do Planalto.
O chefe do Executivo tem se incomodado com a demora do Ministério da Saúde em apresentar um protocolo claro para o uso do remédio. Bolsonaro também se queixa da falta de um plano detalhado para o combate ao vírus e retorno de atividades nos estados.​
À noite, Bolsonaro fez uma provocação ao infectologista David Uip, encarregado pelo governador João Doria (PSDB) para a chefia do centro de contingência contra coronavírus em São Paulo. Ele voltou ao trabalho nesta segunda, após se recuperar da doença, e, questionado pelo apresentador José Luiz Datena, da Band, evitou responder se havia feito uso da hidroxicloroquina.
"O médico David Uip tomou, ou não, HIDROXICLOROQUINA para se curar?", escreveu Bolsonaro em rede social.
Na semana passada, Bolsonaro esteva prestes a demitir Mandetta, mas foi demovido por aliados próximos. Nesta segunda, ele passou a considerar uma exoneração até o final do dia, mas recebeu recados negativos também do Poder Legislativo.
Os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já informaram ao Palácio do Planalto que apoiam a permanência do ministro. O receio da articulação política é de que uma demissão possa estimular retaliações em votações do governo.

COMO OS AUXILIARES DE BOLSONARO SE POSICIONAM NO COMBATE AO CORONAVÍRUS

Apoiam publicamente o isolamento total
Henrique Mandetta (Saúde)
Paulo Guedes (Economia)
Sergio Moro (Justiça)
Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia)
Tereza Cristina (Agricultura)
Apoiam publicamente Bolsonaro e a reabertura do comércio
Abraham Weitraub (Educação)
Ricardo Salles (Meio Ambiente)
Arthur Weintraub (assessor especial da Presidência)
Onyx Lorenzoni (Cidadania)
Ernesto Araújo (Relações Exteriores)
Augusto Heleno (GSI)
Regina Duarte (Secretária Especial da Cultura)
Publicamente afirmam uma coisa e, nos bastidores, defendem outra
Damares Alves (Mulher, Direitos Humanos e Família)
Jorge Oliveira (Secretaria-Geral)
Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional)
André Mendonça (Advocacia-Geral da União)​

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Com o aval dos militares, Mandetta diz que Bolsonaro fica onde está, FSP

Após fritura terminal, ministro da Saúde explicita a anomalia na cadeia de comando em Brasília

  • 27
SÃO PAULO
O presidente Jair Bolsonaro ameaçou "usar a caneta" para calar "as estrelas" de sua equipe no domingo (5), e sinalizou a demissão de Luiz Henrique Mandetta (Saúde) durante toda a segunda, convocando inclusive uma reunião ministerial sobre a crise da Covid-19.
Ao fim, o que se viu foi um calmo Mandetta convocar uma entrevista coletiva para dizer que, apesar de ter seu trabalho atrapalhado pelo Palácio do Planalto, não vai deixar o cargo. Em outras palavras, o ministro disse que o presidente fica onde está.
Foi mais uma cena extraordinária da crise do coronavírus, que rearranjou a ordem natural das coisas em Brasília. O que se viu no Ministério da Saúde foi um titular reafirmando que só trabalhará pela ciência —várias vezes, para delimitar a linha entre seu pensamento e a de seu superior e sua base de apoio.
Mandetta joga álcool em gel na mão de Bolsonaro durante entrevista coletiva
Mandetta joga álcool em gel na mão de Bolsonaro durante entrevista coletiva - Sérgio Lima - 18.mar.2020/AFP
Até a hidroxicloroquina, vendida por Bolsonaro como o elixir definitivo para a cura da Covid-19, foi colocada no patamar de remédio em teste que é pelo ministro.
Se queixou que a politicagem do dia, marcado até por uma reunião do presidente com Osmar Terra, pretendente à sua cadeira. Considerou uma jornada de trabalho perdida.
Sobrou até uma ironia com o mito da caverna, de Platão, sobre a obscuridade que envolve processos mentais no centro do poder, e o elogio da dúvida —algo que soa como heresia ao bolsonarismo.
O agudo processo de fritura do então titular da Saúde tem sido inédito. Nem tanto pela humilhação pública, já que para tanto há diversos exemplos na história recente, mas por ele acontecer no meio de uma crise sem nenhum precedente.
A permanência de Mandetta é mais uma vitória momentânena da ala militar do governo. Capitaneada pelo ministro Fernando Azevedo (Defesa) e operacionalizada por Walter Braga Netto (Casa Civil), está buscando reduzir a temperatura dos movimentos abruptos do chefe.
Conseguiu em alguns momentos, como ao tomar para si a comunicação da crise nas entrevistas comandadas pelo general Braga Netto e na modulação do pronunciamento de Bolsonaro da terça-feira da semana passada (31). Mas não teve sucesso em vários outros, notadamente as postagens incendiárias de Bolsonaro contra governadores e suas políticas de isolamento social.
A aposta de Bolsonaro é claramente intuitiva, o que é uma constante de sua gestão. Ele se guia pelo que dizem suas redes sociais, em especial o que é filtrado e magnificado pelo filho vereador Carlos (Republicanos-RJ), aquele que na sexta (3) acusou o vice-presidente Hamilton Mourão de uma conspiração contra seu pai.
Nesses canais, cuja confiabilidade é mínima e a ação de robôs impera, há um país clamando pelo fim das quarentenas no qual o presidente diz acreditar. Enquanto isso, a crise ia sendo tocada pelas pastas da Saúde e da Economia, às turras com o Congresso e o Judiciário, com estados e municípios operando na ponta.
Contra Bolsonaro está a opinião pública, conforme o Datafolha demonstrou em pesquisa sobre sua gestão à frente da crise. Além disso, o apoio de três quartos da população a medidas de isolamento, e os 71% que dizem aceitar até restrições mais duras dão fôlego para os governadores, que majoritariamente adotaram o isolamento.
Agora, a permanência de Mandetta mostra um presidente em pleno exercício da tutela que lhe é imposta. Foi convencido, segundo relatos, pela ameaça de uma perda terminal de capacidade de governar que a demissão do ministro traria. Resta saber por quanto tempo tal estrutura se mantém de pé.