sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

PEDRO DORIA Como o eleitor se informa- OESP (definitivo)

Nesta quinta-feira, 12, os britânicos foram às urnas para mudar a compoiição da Câmara dos Comuns e, quem sabe, romper o impasse que já vem de duas legislaturas a respeito do Brexit. Foi neste cenário que a Revealing Reality, um instituto de pesquisas dedicado a compreender os impactos do digital na sociedade, fez um experimento que pode nos ajudar muito a compreender como redes sociais e eleições se relacionam. O resultado tem um quê de intuitivo. Mas também surpreende.
Não se trata de um estudo definitivo. Os pesquisadores pinçaram seis pessoas diferentes com cortes demográficos distintos e posições políticas diversas em todo o país. Apenas seis. Instalaram, no smartphone de cada um, um aplicativo que registrava num vídeo tudo o que cada um dos voluntários fazia. Durou uma semana. Por terem sido apenas seis, não tem valor estatístico. Confirma, porém, outros estudos com metodologias similares.
As primeiras duas observações quebram um tanto do discurso habitual sobre manipulação política. Os seis foram muito pouco expostos a notícias flagrantemente falsas. Também tiveram contato mínimo com informação que vinha na forma de propaganda paga nas redes sociais. Isto não quer dizer, porém, que desinformação não tenha sido uma constante. Porque foi.
Jovens ou velhos, conservadores, liberais ou progressistas, homens ou mulheres — o comportamento é similar. A informação política vem pelas redes sociais e de forma passiva. As pessoas não buscam se informar em sites de imprensa ou mesmo perfis específicos. O que leem ou assistem chega a elas selecionado pelo algoritmo de cada rede. E este material, quase sempre, é recomendado por pessoas que estão em seu círculo de conhecidos. Quem consome política deste jeito não é de todo ingênuo. Tem consciência de que recebe conteúdo selecionado por amigos e algoritmos com um viés ideológico próximo a seu ponto de vista. Mas as pessoas não parecem se importar. É assim que preferem.
E aí entram as questões mais delicadas. Informação de veículos tradicionais e de fontes obscuras se misturam. Mesmo que os fatos estejam em grande parte corretos, frequentemente comentários que os acompanham, títulos ou mesmo imagens são distorcidas para forçar leituras, tirar do contexto, adequar a uma visão de mundo.
Não à toa, artigos de opinião que trazem informações são preferidos ao noticiário factual. Se as análises são de qualidade ou se apenas uma desculpa para encaixar a realidade a um pacote ideológico, pouco importa. Opinião bate noticiário.
Nesta toada, entra um aspecto fundamental: o público consome notícia como forma de entretenimento. Não se trata de um exercício de cidadania, mas uma forma de distração. Está mais próximo da relação que o torcedor tem com seu time perante o campeonato de futebol, do que com o de um eleitor que busque refletir sobre soluções para os problemas do país e se posicione no pleito perante suas conclusões.
Neste cenário, memes políticos se tornam extremamente populares. Vídeos muito curtos com um trecho de fala, uma fotografia engraçada com uma frase que embase um comentário ou tenha, como num cartum, uma boa tirada. Servem menos para informar e mais para encaixar os acontecimentos numa narrativa que o consumidor já abraçou.
É justamente como a nova direita se comunica no Brasil, no mundo. E não é como a esquerda ou o centro fazem. Os resultados eleitorais são facilmente explicáveis.

Os dez que passaram, os dez que vêm, Pedro Dória, OESP

É um anacronismo, mas ainda falta um ano para o fim da década. Só quando virar 2021 que terá início a terceira década do século 21. Ainda assim, podemos com alguma liberdade ao menos dizer que os anos 10 estão se encerrando. Este bloco de dez anos é útil porque ilustra o violento ritmo de avanço tecnológico pelo qual passamos, coisa que no cotidiano é muito fácil perder de vista. Nada melhor, neste exercício, do que a lista preparada pelo site The Verge com os 100 mais importantes lançamentos do período.
O maior deles, número um da lista, é o iPhone 4. Foi o primeiro a ter uma câmera de qualidade, que permitiu adotarmos de vez o celular como a máquina fotográfica da família. Foi o primeiro que ensanduichou metal e vidro para produzir um aparelho com aparência sólida. O primeiro com câmera de selfie. O que hoje consideramos básico no celular foi inventado ali, em 2010. O último iPhone apresentado por Steve Jobs.
O quarto da lista é o Galaxy S6, da Samsung. Primeiro celular com tela curva, foi o aparelho que mudou os Androids de patamar. Com acabamento impecável, numa linguagem de design que ainda hoje encontramos no topo de linha da marca, mostrou que aparelhos Android podiam enfrentar os da Apple de igual para igual — popularizando assim, de vez, os smartphones.
O quinto maior lançamento foi o primeiro Tesla popular — o Modelo S. O segundo é a primeira geração da caixa de som inteligente Echo, da Amazon. Apontam para o futuro: nestes próximos dez anos, veremos o avanço de carros elétricos e autônomos, assim como casas e cidades controladas por comandos de voz. Não é pequena a mudança.
Em janeiro de 2010, as cinco companhias de maior valor de mercado nos EUA eram, como foram por quase todo o século 20, bancos e petroleiras — com a visita de tempos em tempos da GE. Hoje são, alternando-se na ordem, Apple, Google, Facebook, Amazon e Microsoft. No último decênio, acabou a Era Industrial e teve início a Era Digital.
Em 2010, ainda comprávamos CDs e  frequentávamos locadoras de DVDs em busca do que assistir  no fim de semana. Toda a indústria do conteúdo — música e jornalismo, publicidade e entretenimento — já foi profundamente transformada. Em alguns casos, os efeitos são confortos. Carregamos toda música que podemos querer no bolso. Noutros, a coisa é mais densa — a interrupção por muitos do hábito de se informar sobre a política  de forma sistemática favorece a eleição de demagogos e extremistas.

Vai mais fundo

O rearranjo de todas as indústrias muda as entranhas da economia. As empresas se tornam mais enxutas — porque a lucratividade baixou, porque a automação o permite, ou por ambos. Empresas saíram consolidando, criando grandes conglomerados que, em muitos setores, se tornaram monopolistas, diminuindo a competição. Mais gente trabalha por conta própria — seja dirigindo Uber, seja montando startups, ou mesmo porque trabalhar de forma remota possibilitou independência.
Na transformação das relações de trabalho, a legislação que o mundo imaginou na década de 1930 se tornou anacrônica e quase todos os partidos de esquerda — não é só aqui — ainda não conseguiram aceitar a transformação. A obsolescência do pensamento de esquerda é um dos motivos pelos quais assistimos a um avanço mundial da extrema direita. Preocupa. Porque extremos são ruins, porque há questões habitualmente encaradas pela esquerda que carecem de atenção — mas com soluções novas.
Tudo indica que todos estes debates estarão ainda mais vivos nos anos 20 que ora chegam.

Ouvir, o verbo do ano, Pedro Doria, OESP (mais que definitivo)

Sabe aquele seu tio bolsonarista? Por que ele acha que o país está melhor? A resposta será algo de óbvio — petralhas, corrupção, comunismo. Pergunte o mesmo doutra forma. Dificilmente haverá algo novo. Pergunte, pois, uma terceira vez. Os cacoetes, as respostas pré-fabricadas vão embora. Virão suas aflições, valores, preocupações.
Talvez você descubra, na terceira, que há pontos de encontro. Se não nas soluções, talvez no diagnóstico.
Sabe aquele amigo querido Lula livre? De cara falará sobre Golpe, fascismo. A segunda resposta vai melhorar um pouco, mas resvalando na repetição fácil. Na terceira, o que causa angústia começará a aparecer. E você concordará em alguns pontos, sabe?
Se a regra de ouvir atento e com dedicada empatia for obedecida, vocês vão adorar a conversa. É seu tio, é seu amigo. O afeto já está lá, basta reencontrar. Somos as mesmas pessoas que éramos dez anos atrás. Perdemos foi a capacidade de tolerar o diferente.
Há razões.
Passam por uma profunda transformação de ordem econômica que tornou a vida mais difícil. Vai se estabilizar de novo — mas o processo não é rápido. A economia industrial está morrendo e, a digital, nascendo. O impacto no cotidiano é imediato e só vai assentar em uma ou duas décadas. Não tem jeito de ganhar a vida que não passou ou passará por mudança. Vivemos isso, pessoalmente, na falta de grana, na de emprego, nas empresas que demitem, na descoberta de ganhar dinheiro de formas diferentes. Sobreviveremos. Nenhuma transformação deste nível deixa a vida fácil.
O sentido mais imediato da transformação está nas redes sociais. Conversávamos com aqueles de quem gostamos cara a cara. Nuns casos todo dia, noutros a cada dois meses. Mas uma declaração que causasse desconforto esbarrava logo numa reação — mesmo que só um franzir de sobrancelhas. Ao vivo, chegávamos logo a um acordo de paz. Pessoalmente a gente se ajeita. O post que será lido dois dias depois não tem esse ajeitamento. Causa o choque sem oferecer espaço para negociar a paz.
Aí entram no jogo os algoritmos. Eles dão mais destaque para aquilo que causa indignação. Não foi de propósito. A inteligência artificial das redes foi programada para encontrar o que deixa as pessoas por mais tempo grudadas no sistema. Descobriu a natureza humana: raiva liga a gente. Agora, as empresas precisarão abrir mão de ter nossa atenção o tempo todo. Vivem de lucro, não têm regulação, para consertar o mundo precisam abdicar de dinheiro. Não fazem.
Enquanto os governos não se movem, as empresas tampouco, restamos nós. O que é mais importante?
A pergunta é séria.
Se o mais importante for uma afirmação de pureza ideológica —quero impor minha verdade ao mundo — a democracia não sobreviverá. Se for a busca pelo encontro de quem gostamos, aí a democracia tem chances.
Este é o pacto democrático. Topar a discordância e se dedicar à busca do meio termo. A alternativa é dizer que o outro é errado. Atende pelo nome é autoritarismo, a antessala da ditadura.
Não importa se de direita ou de esquerda, autoritarismo vai sempre querer calar. Quando vira ditadura, termina até calando à força quem meio concordava.
Democracia é a conversa contínua. Democracia é o reconhecimento de que vamos discordar. Porque pensamos diferentemente — e tudo bem. Às vezes um grupo está no poder, às vezes outro. Quando um está no poder, o Legislativo tem espaço para o outro e nunca, jamais, alguém é absoluto. Às vezes perdemos, às vezes ganhamos. No Executivo, todos cometerão excessos. O Executivo seguinte corrige. Todos que chegam ao Executivo vão querer ficar vinte anos — e nenhum ficará.
Todo Executivo vai deixar a população com enfado. Cansada. Querendo mudança. Que bom.