Causou alguma estranheza a
aproximação feita na coluna passada (19/6) entre modernismo e romantismo.
Analogias desse tipo nunca são exatas, mas esses dois movimentos de ideias
tinham em comum o impulso de romper regras, a exaltação de um eu espontâneo e a
busca de inspiração nas fontes irracionais e nas sociedades e épocas ditas
"primitivas". Mantiveram também uma atitude hostil em face da máquina
e do progresso técnico, apesar de numerosas exceções, desde logo a de artistas
futuristas como os poetas Marinetti e Maiakóvski.
Talvez não seja mecânico demais
especular que todo surto de desenvolvimento tecnológico tende a gerar como
contrapartida alguma reação de recusa inconsciente e de idealização nostálgica
da natureza. Se for assim, torna-se tentador perceber o romantismo como réplica
ideológica à primeira revolução industrial (tear e máquina a vapor) e o
modernismo como seu equivalente em relação à segunda (eletricidade e motor a
combustão).
Por mais que o computador pessoal
embutido em telefones móveis interligados não pareça tanto se comparado aos
avanços da virada de século anterior (telefone, lâmpada elétrica, automóvel,
cinema, rádio e avião foram criados entre 1880 e 1905), não resta dúvida de que
estamos em meio a mais um desses surtos tecnológicos. Não por acaso,
presenciamos também uma das mais poderosas ondas periódicas de idealização da
natureza, ressaltada agora pelas evidências de que estamos exaurindo recursos e
ameaçando o futuro das espécies, inclusive a nossa.
Ao se tornar campanha popular, que
varre as instituições culturais em todos os quadrantes, da pré-escola à mídia,
a mentalidade ambientalista adquire um maniqueísmo didático, quando não
beligerante e autoritário. Dado que as teorias críticas da sociedade moderna,
como o marxismo e a psicanálise, mergulharam em crise intelectual, o que
sobressai no caos ideológico é uma espécie de rousseauismo difuso, em que a
sociedade aparece como "má" e a natureza como "boa".
Não é exatamente essa a imagem da
natureza que a teoria de Darwin permitiu vislumbrar. O abalo que seu advento
provocou, na segunda metade do século 19, era religioso, conforme aparecia pela
primeira vez uma explicação plausível para a complexidade dos seres vivos que
dispensava a criação divina. Mas é viável ser religioso e darwinista; basta
imaginar que Deus tenha engendrado as leis da seleção natural da mesma forma
que as da gravidade ou as da termodinâmica.
O maior abalo foi moral; a natureza
afável, bem-aventurada, próspera e harmoniosa dos românticos não existia. Desde
Malthus, talvez o autor que mais influenciou Darwin, o que irrompia era uma
natureza cruel, avara, na qual plantas e animais se reproduzem além dos meios
de subsistência, sobrevivendo no limiar da fome, forçados a uma luta implacável
uns contra outros. Uma hipótese científica, confirmada pela genética no século
20, dava materialidade à concepção de Hobbes segundo a qual, na natureza, a
vida é "solitária, miserável, sórdida, brutal e curta".
Claro que a natureza não é boa nem
má, somos nós que lhe atribuímos tais predicados imaginários. Ela é
perfeitamente amoral, admitindo uma só exceção à lei do mais forte, que é a
daquele capaz de iludir o mais forte por dissimulação. Alguns arranjos,
bastante raros e instáveis, configuram um toma lá dá cá que é a matriz da qual emergiram
todos os sistemas morais e jurídicos dos humanos.
O segundo abalo foi ocasionado pela
síntese científica entre darwinismo e genética no decorrer do século passado.
Brilhante historiador desse período, o naturalista inglês Richard Dawkins
concebeu uma metáfora aterradora ao imaginar que os seres vivos são como
autômatos, fantoches ou zumbis comandados por partículas alojadas em suas
células, os genes. Nós, "máquinas desajeitadas", nascemos e morremos,
mas os genes perduram; em certo sentido, como verdadeiras divindades, eles nos
"usam" na forma de veículo rumo à eternidade.
Ao adquirir
consciência dessa situação terrível, tudo o que os humanos fazem, quando
melhoram suas condições de vida e inventam propósitos fantasiosos para um mundo
sem sentido, implica uma revolta contra a natureza, uma insubordinação perante
as limitações que ela impõe, uma astúcia para superá-las. O homem é o ser que
reforma a si mesmo reformando a natureza. Por mais que desejemos e tenhamos de
entrar em concórdia com ela, o que define nossa espécie é esse antagonismo
essencial.
RESUMOEste texto é o trecho inicial de manifesto do professor de
filosofia e colunista daFolhaa ser publicado no próximo mês pela
n-1 edições. O autor defende que as manifestações de rua pelo mundo são uma
resposta ao neoliberalismo e a um modo de governo baseado na crise, e que podem
fazer surgir um novo sujeito político.
Pedro
Ladeira - 17.jun.2013/Folhapress
Em Brasília, manifestantes
ocupam a cúpula e o gramado do Congresso Nacional durante as manifestações de
junho de 2013
Haveria
de chegar um tempo no qual as ruas começariam a queimar. Desde 2008, elas
queimam nos mais variados lugares. Em Túnis, em São Paulo, no Cairo, em
Istambul, no Rio de Janeiro, em Madri, em Nova York, em Santiago, em Brasília.
Elas ainda queimarão em muitos outros e imprevistos lugares, recolocando o que
é separado pelo espaço em uma série convergente no tempo. Por mais que alguns
procurem se convencer do contrário, por mais que agora o fogo pareça ter se
retraído, as ruas não pararam de queimar desde então, elas só deslocaram suas
intensidades. É importante lembrar disso, pois há algo que pode existir apenas
quando as chamas explodem em uma coreografia incontrolada de intensidades
variáveis. Por isso, diante de ruas queimando não há de se correr, não há de se
gritar, há apenas de se perguntar: o que fala o fogo? O que se diz apenas sob a
forma do fogo?
Quem
ouvir o fogo queimar nas ruas perceberá que ele diz sempre a mesma coisa: que o
tempo acabou. Não apenas que não temos mais tempo, mas, principalmente, que não
há mais como contar o tempo que está a nascer como uma possibilidade mais uma
vez presente. Um tempo que não se conta mais, que não se narra mais, que não se
habita mais tal como até agora se habitou. Esse tempo produzirá suas narrativas
e seus habitantes e queimará o tempo no qual narrávamos e habitávamos e contará
com números que não conhecemos e terá tensões que não saberíamos como deduzir e
despossuirá e não será mais medido como instante ou duração e será outro ao fim
e ao cabo.
Quem
ouvir o fogo perceberá que ele também diz outra coisa: que não há mais lugar.
Em 2013, quando, no Brasil, as ruas começaram a queimar, uma jornalista
entrevistou um manifestante. Ao final, ela perguntou seu nome: "Anota aí,
eu sou ninguém". De fato, a frase não poderia ser mais clara. Como um
Ulisses redivivo diante do gigante Polifemo, que agora parece vir de todos os
lados, ele encontrou na negação de si a astúcia maior para conservar seu
próprio destino.
Por mais
paradoxal que possa inicialmente parecer, "Eu sou ninguém" é a mais
forte de todas as armas políticas. Pois quem controla o modo de visibilidade e
nomeação, controla o que irá aparecer e como os circuitos de afetos se
construirão. Por isso, a negatividade sempre foi uma astúcia daqueles que compreendem
que a liberdade passa pela capacidade de destituir o Outro da força de
enunciação dos regimes de visibilidade possíveis. "Eu sou ninguém" é,
na verdade, a forma contraída de: "Eu sou o que você não nomeia e não
consegue representar". Para existir, é necessário fazer a linguagem
encontrar seu ponto de colapso. Nós somos apenas lá, onde a linguagem encontra
seu ponto de colapso. Na verdade, existir é colocar em circulação um vazio que
destitui, uma nomeação que quebra os nomes. Se me permitirem, é necessário ser
um sujeito antipredicativo.
URGÊNCIAS
Contra
esse tempo e esse espaço, o poder inventa todas as formas de urgências, de
ataques terroristas, de crises econômicas, de violência estatal. Ele exige uma
solidariedade à situação atual forjada no medo e no gozo. Poucos são os que
aderem à situação atual a partir de uma ética da convicção; a grande maioria
adere simplesmente sem crença. O que não poderia ser diferente, já que o poder
atual baseia-se na mobilização contínua da ausência de saída, da ausência de
escolha. Sua lógica é a lógica do sufocamento. Essa é uma das mais miseráveis
ironias de nosso tempo: um regime que prega a livre-escolha legitima-se através
da insistência contínua de que não temos escolha.
Não há
outro caminho, diz o mantra dos economistas-jornalistas, consultores de sistema
financeiro especializados em se salvar na base do assalto ao dinheiro público.
E só há uma forma de levar as pessoas a acreditarem não ter escolhas: há de se
gerir e produzir continuamente o medo, gerir situações de emergência que se
tornam regra, criar um regime que se sustenta na contradição de ser, ao mesmo
tempo, liberal e militarista, permissivo e restritivo, que prega a liberdade
individual mas que grampeia seu telefone. Um regime que invade sua privacidade
em nome de sua segurança.
Por isso,
ele necessita que ataques terroristas reverberem no mundo inteiro, com imagens
se repetindo obsessivamente, comentadas por jornalistas com seu espanto
ensaiado, para afinal alimentar mais ataques com essa promessa tácita de
sucesso de audiência, para arrastar todos os que caíram sob a lógica do
ressentimento social à promessa de fim do anonimato e de protagonismo encarnado
no papel principal na cena mundial.
O gosto
macabro pela visibilidade de eventos de violência espetacular é apenas a prova
da necessidade contínua de catástrofes e de circulação de insegurança como
prática de governo. Como já dizia Durkheim, e isso nossos governos sabem bem, o
crime não é uma patologia social, mas um dispositivo fundamental para o fortalecimento
da coesão. Por isso, nunca houve e nunca haverá sociedade sem crime. Através do
crime, a sociedade fortalece seu sentimento de unidade contra o dano sofrido,
ela volta à vida por ter um risco de desagregação à espreita. Ela precisa do
crime. Na governabilidade atual, o crime não é algo que se combate, ele é algo
que se gerencia. Tudo fica mais fácil quando o governo se reduz a um gabinete
de crise. Isso talvez nos explique por que nossa época passará à história
exatamente como o momento em que a crise, em todas as suas formas, virou uma
forma de governo. O ideal do neoliberalismo é transformar a prática de governo
na gestão de um gabinete infinito de crise.
Isso é
facilitado pelo fato de o neoliberalismo ser, mais do que uma doutrina
econômica, um discurso moral. Sua necessidade se impõe a nós como uma injunção
moral, como uma moral baseada na coragem enquanto virtude. Coragem para assumir
o risco de viver em um mundo no qual só se sobreviveria através da inovação, da
flexibilidade e da criatividade. Assumir riscos no livre-mercado aparece
atualmente como a expressão maior de maturidade viril, como saída da minoridade
a que estariam submetidos aqueles pretensamente infantilizados pela demanda de
amparo do Estado-providência. Esse mantra leva os sujeitos a acreditarem que,
se eles fracassaram economicamente, é por culpa absolutamente individual, por
culpa de sua incapacidade de se reinventar, de se "reciclar", como
uma garrafa PET.
Enquanto
essa moral do risco simulado era brandida em voz alta, dois economistas
italianos (Guglielmo Barone e Sauro Mocetti) divulgaram em 2016 um sintomático
estudo mostrando como o sobrenome das pessoas ricas em Florença são, em larga
medida, os mesmos de 1427 a 2011. Certamente deve ser pelo mérito e pela
capacidade que essas famílias tiveram de educar seus filhos para terem coragem
diante do risco. Até porque, diante da primeira crise, o Estado irá salva-los,
como salvou o Citibank, o BNP/Paribas, o Deutsche Bank e a tanto outros durante
séculos. O que se diz atualmente é: contra esse patrimonialismo explícito
travestido de "mérito", contra esse rentismo que se faz passar por
"coragem", não há escolha.
Há de se
ter clareza desse ponto para compreender um paradoxo aparente. Costumamos
acreditar que de todo acontecimento emerge um novo sujeito político. Mas nosso
tempo tem mostrado como todo acontecimento produz também múltiplos sujeitos que
procuram, com todas suas forças, negar que o tempo acabou e que o lugar
implodiu. Eles se servem da abertura produzida pelas chamas que queimam nossas
ruas para usar o fogo na caldeira que cozinha o festim de sentimentos reativos
com seus golpes brancos, suas fronteiras, suas bandeiras nacionais, sua
ressurreição de arcaísmos. Foram esses golpes e essas fronteiras e essas
bandeiras e esses arcaísmos que nos fizeram perder até agora e inocular
melancolia em alguns daqueles que poderiam estar no campo de batalha. Mas
lembremos a eles de forma clara e segura: nós nunca fomos derrotados.
É
verdade, nós perdemos várias vezes, mas nunca fomos derrotados. Pois nossas
derrotas são, na verdade, o fogo alto que forja o aço de nossas vitórias. Toda
verdadeira vitória é fruto da elaboração profunda sobre perdas. Ela reverbera o
desejo animal de nunca mais perder. Por isso, só vence quem caiu e clama com paciência
por uma segunda chance. Ela virá, mais cedo do que esperamos. É isso que nos
leva a afirmar que tais perdas não são derrota alguma. Talvez o traço mais
sublime e incompreendido da filosofia hegeliana seja a certeza de que as
feridas do Espírito são curadas sem deixar cicatrizes. Isso significa muita
coisa, entre elas que nada, absolutamente nada, terá a força de bloquear
definitivamente a possibilidade de realizarmos nosso destino. Há momentos em
que esse destino fala baixo, mas ele nunca se cala, e é isso o que importa.
No
entanto, é certo que nada nos exime de nos perguntarmos por que nossas perdas
têm sido tão constantes nos últimos tempos. Por que as ruas estão queimando
desde 2008, por que nossas ruas queimando desde 2013 não produziram ainda as transformações
que poderiam produzir? Por que essa força efetiva da reação? Várias são as
razões que poderiam ser levantadas, mas talvez seja o caso de se deter diante
de uma delas. A saber: porque não temos mais um corpo e não há, nem nunca
haverá, política possível sem corpo.
Se
quisermos voltar a vencer, precisaremos de um corpo. Teremos que aprender a
dizer, como David Cronenberg: "Vida longa à nova carne". Insurreição
não é emergência. Uma insurreição não é necessariamente a emergência de um novo
sujeito político. A insurreição pode ser a explosão bruta da revolta, mas, para
que essa revolta forje um sujeito emergente,é necessário ainda mais um esforço.
Só mais um esforço, se quiserdes ressoar a emergência.
VLADIMIR
SAFATLE, 43, professor de filosofia da USP, é colunista daFolha.
RESUMOAutor defende que a
esquerda se livre do pensamento antieconômico. Para ele, o fato de o Partido
dos Trabalhadores ter sido fundado em um momento em se fazia a crítica do
marxismo soviético levou a uma crença de que a economia não teria
especificidades e de que as soluções seriam sempre exclusivamente políticas.
Eduardo
Ortega/Galeria Fortes Vilaça
"Your Ghost in Me"
(2016)
Não
é um momento bom para a discussão econômica na esquerda brasileira. A nova
matriz econômica do primeiro governo Dilma claramente deu errado. Embora seja
legítimo discutir o quanto da crise atual foi causada pelos erros da matriz, é
indiscutível que se gastou muito por um crescimento que não veio –e quem veio
foi a inflação. Quando Dilma, logo após a eleição de 2014, nomeou Joaquim Levy
para a Fazenda, esperava-se uma autocrítica petista. Quando o
desenvolvimentista Nelson Barbosa assumiu no lugar de Levy e propôs um ajuste
muito parecido, a autocrítica parecia inevitável.
Mas
a guerra do impeachment tornou secundária toda discussão que não fosse sobre
quem, PT/PMDB ou PMDB/PSDB, teria o direito de distribuir as verbas e cargos do
governo federal (e se meter na Lava Jato). O PT se recolheu em um discurso
antiajuste militante que já sinalizava o prognóstico de que a volta para a
oposição era inevitável. O quinto congresso do partido em Salvador, no ano
passado, prosseguiu em total negação da necessidade de ajuste. Há muito pouca
coisa nos manifestos de esquerda recentes que pareça atraente para um estudante
de economia, e isso diminui a reserva de potenciais ministros da Fazenda dos
futuros governos progressistas.
As
circunstâncias do impeachment certamente favorecem o instinto de voltar a ser o
PT dos anos 1980. A manobra parlamentar que afastou Dilma Rousseff tem mais
cara de Brasil pré-89 do que qualquer coisa nos manifestos do PT. Mas isso é um
motivo ruim para não discutir o fracasso da nova matriz econômica. Não só
porque honestidade intelectual sempre serve para alguma coisa, mas também
porque o novo governo é extremamente impopular e ainda mais exposto à Lava Jato
do que o anterior. A esquerda precisa estar pronta para chegar em 2018 com um
discurso para ganhar a presidência, não a eleição para o centro acadêmico. Por
esse motivo, senão por todos os outros, precisa voltar a falar sério sobre
economia.
Há
debates interessantíssimos e intelectualmente instigantes a serem feitos sobre
a economia brasileira, mas este aqui não será um deles. A autocrítica
necessária é só o reconhecimento de alguns fatos básicos, como a necessidade de
controle das contas públicas e contenção da inflação. É a mesma autocrítica que
o PT fez quando Lula ganhou a presidência. Para além disso (e se tivermos
apenas isso já ficarei bastante satisfeito), seria bom se iniciássemos
negociações políticas sobre a reforma da Previdência ou do sistema tributário
com a esquerda na mesa. Daí em diante, no mundo de debates sofisticados sobre câmbio
e poupança, inovação e abertura comercial, há gente muito melhor do que eu para
ser lida, à esquerda e à direita.
E
este não é um texto voltado para economistas. Se você é economista e precisa
ouvir o que vou dizer, repense suas escolhas de vida. É uma discussão com os
intelectuais petistas, em geral oriundos de outras ciências sociais e das
humanidades –assim como eu–, e com a esquerda universitária em geral. Pois
estou convencido de que o problema somos nós.
LADO BOM
Não
é inevitável que a esquerda seja ruim de economia. Nos Estados Unidos,
economistas progressistas como Paul Krugman ou Joseph Stiglitz têm ganhado a
maior parte dos debates contra seus equivalentes republicanos. A esquerda
europeia claramente tinha razão contra quem propôs austeridade logo após a
crise de 2008. Durante os trinta anos gloriosos do pós-guerra, a esquerda no
mundo desenvolvido geriu o capitalismo mais ou menos tão bem (ou tão mal,
dependendo do país) quanto a direita. Foi um governo trabalhista que concedeu
autonomia ao Banco Central britânico. Aqui na América Latina, as esquerdas
chilena e uruguaia administram bem economia, como, aliás, também o faz o
governo do bolivariano Evo Morales (ao menos segundo opinião recente do FMI). A
gestão econômica foi adequada durante os dois governos de Lula.
Note-se
que, nos exemplos acima, os economistas de esquerda não acertaram apenas quando
o que precisava ser feito era aumentar a intervenção do Estado na economia
(como no dia seguinte ao da crise de 2008), mas também quando era necessário
conter gastos ou tornar a gestão econômica mais previsível. Não há nada
intrínseco ao esquerdismo que exija que seus defensores desequilibrem o
orçamento público ou deixem a inflação sair de controle.
No
que se refere a temas como equilíbrio fiscal, aliás, a esquerda deveria ser
mais atenta do que a direita: quem depende de um Estado forte para atingir seus
objetivos são os progressistas. Um Estado falido serve tanto à esquerda quanto
um mercado inteiramente montado em cima de hipotecas "subprime" (segunda
linha) e de produtos financeiros correspondentes serviu ao liberalismo.
Esquerda
e direita discordarão sobre o quanto deve ser taxado, sobre como o dinheiro
arrecadado deve ser gasto, mas não sobre o fato de que o quanto você consegue
arrecadar impõe algum limite sobre o quanto você pode gastar.
Não
se trata de discutir ortodoxia contra heterodoxia. As escolas de economia têm
visões diferentes sobre o papel do câmbio desvalorizado como indutor do
desenvolvimento, ou sobre o quanto do investimento deve ser direcionado pelo
Estado. Esses debates são legítimos, intelectualmente instigantes, e de enorme
importância prática, mas defendo que a esquerda seja agnóstica sobre todos
eles. O que funcionar, funcionou, e o crucial é manter o foco sobre a redistribuição
de renda e oportunidades.
Isso
significaria não ter uma posição "oficial" da esquerda sobre toda uma
gama de assuntos. Não há por que esperar que todos os que defendem a
redistribuição de renda tenham a mesma opinião sobre o nível ideal da taxa de
câmbio, por exemplo. Da mesma forma, a relação entre investimento estatal
direto e privatização/concessões é um debate sobre fronteiras muitas vezes
fluidas. Deixem de lado no momento (e, no que depender de mim, para sempre) os
que propõem a estatização completa ou a privatização completa da economia
(quase ninguém pertence a esses extremos). Os defensores de mais intervenção
estatal direta estão falando sobre empreendimentos estatais que incluirão
diversas camadas de subcontratação, financiamento privado e permanente risco de
captura regulatória; os defensores da privatização discutem empresas privadas
atuando sob diversas camadas de regulação estatal em mercados com competição
ridiculamente imperfeita, e, novamente, permanente risco de captura
regulatória. A diferença é muito menos radical do que parece.
A
escolha entre as alternativas não parece diretamente relacionada a convicções
sobre igualdade, e, aliás, é inteiramente dentro do reino do possível que
situações diferentes sejam mais bem resolvidas com arranjos diferentes. Não é
razoável marcar a diferença entre esquerda e direita primariamente pela tomada
de posição em nenhum desses debates econômicos.
A
prioridade da esquerda deve ser redistribuir renda e construir um Estado de
bem-estar social, duas discussões em que os economistas (enquanto tais) só têm
direito de aparecer para dizer como fazer melhor o que a política e a moral já
tiverem decidido fazer.
Uma
vez estabelecido esse princípio geral, é também necessário reconhecer que,
historicamente, houve uma afinidade eletiva entre a esquerda e escolas de
economia mais propensas a recomendar a intervenção do Estado na economia. A
esquerda, afinal, já defende a intervenção do Estado na redistribuição de bens
e oportunidades. Há um grau de ceticismo comum em relação aos resultados do
funcionamento do livre-mercado que aproxima os defensores da redistribuição aos
defensores da intervenção estatal.
CASAMENTO
Defendo,
contudo, que esse seja um casamento aberto: os keynesianos e heterodoxos devem
se sentir livres para recomendar, por exemplo, cortes em programas sociais, ou
menores aumentos para o salário mínimo, quando essa for a recomendação de seus
modelos. E a esquerda deve ser livre para recusar propostas heterodoxas que,
por algum motivo (digamos, por aumentar a inflação, ou comprometer a capacidade
fiscal do Estado) prejudiquem os mais pobres ou levem a aumentos da
desigualdade de renda.
Eu,
por exemplo, preferia que o governo Dilma tivesse sido um governo de ajuste
econômico que enfrentasse a questão tributária que Lula não enfrentou. Teria
sido melhor fazer o ajuste e, partindo de uma posição de força, comprar as
brigas por redistribuição no Congresso. Isto é, eu preferia que o governo do PT
tivesse sido mais à esquerda na questão tributária e mais ortodoxo em economia.
Mas
também acho inteiramente possível que um governo heterodoxo menos comprometido
com a esquerda –digamos, o de José Serra, rival de Dilma em 2010– tivesse
obtido resultados melhores do que esses que os heterodoxos de esquerda
obtiveram. Há economistas razoáveis, que não podem ser rotulados como pessoas
ruins ou antipobres, e que acham que os salários subiram rápido demais durante
o governo Dilma. Talvez a mesma coisa não tivesse acontecido em um governo
heterodoxo de Serra. O mesmo pode ser dito sobre a questão fiscal: quando
Nelson Barbosa deixou o governo Dilma por discordar (corretamente) da política
fiscal, o heterodoxo José Luis Oreiro, ex-presidente da Associação Keynesiana
Brasileira, escreveu em seu blog que isso era um sinal de que ele tinha acertado
ao votar em José Serra em 2010.
Também
não se trata de discutir keynesianismo ou "austericídio". Quando a
crise brasileira se agravou, o economista liberal norte-americano Tyler Cowen
escreveu em seu blog (o Marginal Revolution, um dos melhores do mundo) que
gostaria de saber o que os críticos da austeridade teriam a dizer sobre isso.
Afinal, o Brasil foi um país que se saiu excepcionalmente bem nos anos da crise
em função de políticas de intervenção estatal. O fracasso brasileiro não seria
prova de que os austeros estavam certos? Essa crítica é o exato reflexo da
visão, muito comum na esquerda brasileira, de que o ajuste promovido por
Joaquim Levy e Nelson Barbosa (ou agora, imagino, por Henrique Meirelles) seria
a versão local do austericídio europeu.
As
duas visões são falsas. As respostas à crise aqui foram diametralmente opostas
às europeias, e, de fato, nos saímos melhor nos anos seguintes à crise do que
os europeus. Mas as políticas de estímulo deveriam ter sido progressivamente
desarmadas. O problema não foi ter sido Paul Krugman em 2009-10, foi não ter
sido Tyler Cowen em 2011-12. A propósito, convém suspeitar da turma que defende
política anticíclica, mas até hoje não foi vista defendendo ajuste em momento
algum. Estamos sempre no mesmo momento do ciclo?
GASTO
Não
é questão de heterodoxia, não é questão de keynesianismo: é muito mais básico.
Não há nenhuma escola de economia que defenda que você pode gastar o quanto
quiser. E esse parece ter sido o pressuposto indiscutível de tudo que a
esquerda brasileira disse sobre economia desde que Joaquim Levy virou ministro
da Fazenda. Quando um economista heterodoxo como Nelson Barbosa criticou a
política fiscal em 2013, ou quando propôs a reforma da Previdência em 2015, a
esquerda fingiu que não ouviu. Economistas heterodoxos como Bresser-Pereira e
José Luis Oreiro foram citados pela esquerda sempre que se tratava de criticar
juros altos, mas muito raramente quando defendiam ajuste nas contas públicas.
Os economistas heterodoxos subiram ou desceram na bolsa de valores intelectual
da esquerda conforme disseram o que ela queria ouvir.
É
nessa submissão da discussão econômica à política que devemos procurar a raiz
do problema. E a formação intelectual do PT –que foi a minha– favoreceu esse
erro.
O
PT foi formado quando o ambiente intelectual na esquerda mundial era marcado
por uma forte reação ao marxismo soviético. A simples presença de trotskistas e
católicos em posições de influência dentro do partido garantia o distanciamento
do marxismo canônico, já em franca decadência no começo da década de 1980. Os
intelectuais petistas da época liam com entusiasmo autores que criticavam o
marxismo ortodoxo, de Gramsci e Foucault a Lefort e Castoriadis, passando por
Negri e Deleuze. Grande parte desses autores, a propósito, criticavam o
marxismo pela esquerda, de pontos de vista que talvez despertassem mais
entusiasmo nos anarquistas e em outras esquerdas dissidentes do que nos
comunistas.
Um
dos traços distintivos desse pensamento era seu antieconomicismo. O marxismo
soviético era baseado na ideia de que o desenvolvimento econômico determina a
evolução das estruturas políticas e ideológicas. A reação a esse dogma, seja
por pós-marxistas, seja por marxistas "ocidentais", tomou a forma de
diversas reafirmações da importância do político, da cultura e do imaginário,
do corpo, enfim, de tudo que havia sido excluído da estreita visão de mundo dos
manuais de marxismo.
Entre
os intelectuais de esquerda, essa reação foi indiscutivelmente saudável,
produzindo toda uma leva de trabalhos historiográficos sobre escravidão no
Brasil que fugia dos determinismos economicistas. A reflexão sobre gênero foi
decisivamente impulsionada pela incorporação de demandas não econômicas ao
programa de esquerda em pé de igualdade com as reivindicações econômicas
usuais. Experiências como o orçamento participativo de Porto Alegre colocavam
em questão os limites da gestão tecnocrática.
Mas
essa trajetória intelectual criou na esquerda pós-marxista um seríssimo deficit
econômico. Confrontados com um raciocínio econômico, o reflexo de nossa
esquerda (o meu, inclusive) é procurar uma forma de reduzi-lo a um problema
político, pois o arsenal teórico da esquerda pós-marxista é muito melhor na
discussão de questões de poder do que nas relativas às regularidades características
das instituições de mercado.
Uma
injeção de ceticismo sobre o quão científicas são as discussões econômicas,
aliás, pode ser bastante saudável para os economistas: isto é, para quem já
parte do princípio de que existem regularidades econômicas identificáveis e
está familiarizado com seus padrões básicos. Meu objetivo aqui é criticar quem
usa a objeção "a economia também é um campo de luta" para se
dispensar de conhecer essas regularidades, ou para evitar levá-las a sério como
condicionantes da ação governamental.
Para
citar um exemplo escolhido por ser mais sofisticado que os outros, tomemos a
discussão de André Singer sobre o fracasso da nova matriz econômica, publicado
em 2015 na edição 102 da revista "Novos Estudos", do Cebrap. Singer
lê o episódio inteiro como uma luta política entre uma coalizão produtivista
(trabalhadores e empresários) e uma coalizão rentista liderada pelo mercado
financeiro. O experimento desenvolvimentista de Dilma teria sido uma ofensiva
da coalizão produtivista, que, entretanto, sob forte pressão política e de
mídia, foi derrotada quando o Banco Central, em 2013, capitulou e voltou a
subir os juros.
Não
se trata de negar que existam conflitos políticos envolvidos na confecção da
política econômica, e, aliás, os melhores economistas não o negam. Nenhum
economista sério negará que existam grupos de pressão, captura regulatória,
"rent-seeking", diferenças evidentes de poder entre os vários agentes
etc.
Mas
a economia não é só isso. Não é possível analisar o abandono da nova matriz
econômica sem levar em conta que seus resultados foram muito ruins: apesar de
tudo que foi gasto com subsídios e isenções no primeiro mandato de Dilma, o
crescimento econômico se desacelerou, e a inflação subiu. Quando o BC sobe os
juros em 2013, já se sabia que os resultados de 2012 haviam sido péssimos. E
2012 foi, segundo Singer, o ano-chave do "experimento
desenvolvimentista".
Admitamos,
para facilitar a discussão, que houve o choque de coalizões descrito por
Singer. Se o PIB em 2012 tivesse crescido 6% (e não 1,8%), é certo que o
governo Dilma teria dobrado a aposta na nova matriz. Não haveria campanha de
mídia capaz de derrubar a popularidade de um governo que atingisse essa taxa de
crescimento. Um crescimento nesse ritmo traria inclusive apoio de parte
importante do empresariado ao governo. E todos sabemos como os aliados
políticos vão e vêm conforme a popularidade desce ou sobe. Perguntem a Dilma
Rousseff.
De
modo que, mesmo admitindo a narrativa de Singer, é preciso admitir que a
coalizão apoiada pela esquerda apresentou um programa ruim, que produziu
resultados ruins. O motivo pelo qual esses resultados foram ruins devem ser
buscados em mecanismos internos à economia. O aumento de juros de 2013, por
exemplo, não teve nada a ver com a aceleração da inflação?
PRAIA
Diga-se
o que quiser de Karl Marx, dessa vez a culpa não é dele. O estudo das relações
entre as categorias da economia de mercado, seja em "O Capital", seja
nos manuais usados no departamento de economia de Chicago, claramente supõe que
algumas coisas (certamente não todas) acontecem por motivos estritamente
econômicos. Toda a análise da esquerda sobre o capitalismo supõe justamente que
as instituições de mercado geram certos incentivos e agregam as ações tomadas
sob estes incentivos de uma certa forma. Se você convencesse o velho Karl de
que os economistas petistas descobriram que sempre é possível, em uma economia
capitalista, sob a direção política certa, crescer aceleradamente, distribuir
renda, garantir pleno emprego e evitar inteiramente as oscilações de mercado,
tudo isso sem nunca sacrificar a classe trabalhadora, ele largaria a biblioteca
do museu britânico e iria para a praia.
Os
economistas continuarão discutindo as melhores maneiras de aumentar a taxa de
poupança ou de promover a inovação tecnológica, e cada um de nós concordará com
uma das partes no debate, mas tudo que este texto pede aos intelectuais da
esquerda brasileira é que não criem dentro dos partidos e movimentos
progressistas um ambiente em que as ideias econômicas sejam julgadas apenas
pela conformidade com a postura política geral do movimento. Foi assim que o
partido republicano norte-americano morreu.
É
preciso defender a autonomia do econômico diante das correntes intelectuais
hegemônicas na esquerda desde 1968, como antes foi necessário defender a
autonomia do político diante do marxismo ortodoxo. É preciso reconhecer a
soberania do pensamento econômico sobre o território intelectual que lhe é de
direito, ainda que continue sendo legítimo e necessário combatê-lo em seus
momentos imperialistas. Quando perceberem em seus alunos o reflexo de chamar
todo ajuste fiscal de "fiscalismo" ou todo aumento de juros de
"rendição ao rentismo", matem essas ideias no berço.
CELSO ROCHA DE BARROS, 43, colunista daFolha, é doutor em sociologia
pela Universidade de Oxford.