Em "Apocalipse nos Trópicos", Petra Costa realiza um feito que precisa ser reconhecido —ela consegue não apenas chegar até Silas Malafaia, pastor e líder neopentecostal e convicto, além de "direitopata", para usar sua terminologia.
Mais, Petra Costa permite que ele mesmo se revele, com suas palavras, e se assuma como uma espécie de iluminado que traz a nós a palavra do Evangelho, quer dizer, a sua interpretação do Evangelho. Para resumir, Malafaia mais parece um candidato a Khomeini dos trópicos que outra coisa.
Com efeito, a primeira parte do filme é um tanto assustadora: trata-se de notar o quanto Malafaia ensaia tornar o Brasil, oficialmente, um Estado teocrático.
Digo oficialmente porque a primeira coisa que os portugueses fizeram, chegando ao Brasil, foi rezar uma missa. De lá para cá, o Estado tornou-se laico, mas a catolicidade imperou soberana até mais ou menos o final dos anos 1980, quando foi desafiada pelos neopentecostais.
Se a Igreja Universal espalhou o credo com sábio aproveitamento da televisão, Malafaia fez um angu em que fé e política tornam-se em definitivo uma coisa só.
Depois de Malafaia expor seu pensamento, Petra Costa nos leva à vaca fria, ou seja, àquilo que já conhecemos —a ligação dele com Bolsonaro, que ao menos no filme parece reduzido a uma espécie de boneco de ventríloquo. Malafaia é quem fala grosso, a palavra absolutista, ou antes, "a Palavra", aquela que supostamente vem de Deus.
É ele quem bota a faca na garganta do então presidente para escolher fulano e não beltrano para o STF. É ele que, no fim, quando Bolsonaro vai para Miami, espinafra o pupilo e diz que ele não é um líder de verdade.
No filme, é verdade, podemos ver que nem todos os pastores são "direitopatas" etc. Mas ninguém explica exatamente o que é esse credo.
O ponto de vista de Malafaia fica claro durante uma de suas pregações. Ele quer uma geração "que faça a diferença" —fazer a diferença é um postulado neoliberal bem individualista que ele transforma em dinâmica geracional— e transforme a história do país.
Ao longo das muitas cenas do teatro eleitoral, algumas bem manjadas, outras menos, o discurso se desloca lentamente para as belezas da democracia, para os pecados, para Jesus Cristo segundo Pasolini e outras variações, antes de chegar ao que realmente importa: o 8 de janeiro e o que o precedeu, ou seja, a vasta instigação golpista.
Nessa altura, sai de cena Malafaia. Quem passa a dominar é a voz lacrimosa da autora, que explica e defende as maravilhas da democracia e promove umas interpretações do livro do Apocalipse, de São João. No final, o filme parece envolver o combate entre duas vozes —a enérgica, autoritária, de Silas Malafaia, e a suave, indefesa e, sobretudo, choramingas de Petra Costa.
Saímos do cinema mais ou menos como chegamos: convencidos de que desta vez Petra Costa realizou um feito, ao se aproximar de Malafaia a ponto de ele desnudar seu pensamento —e ele tem um pensamento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário