Leia em primeira mão trecho de
VLADIMIR SAFATLE
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RESUMO Este texto é o trecho inicial de manifesto do professor de
filosofia e colunista da Folha a ser publicado no próximo mês pela
n-1 edições. O autor defende que as manifestações de rua pelo mundo são uma
resposta ao neoliberalismo e a um modo de governo baseado na crise, e que podem
fazer surgir um novo sujeito político.
Pedro
Ladeira - 17.jun.2013/Folhapress
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Em Brasília, manifestantes
ocupam a cúpula e o gramado do Congresso Nacional durante as manifestações de
junho de 2013
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Haveria
de chegar um tempo no qual as ruas começariam a queimar. Desde 2008, elas
queimam nos mais variados lugares. Em Túnis, em São Paulo, no Cairo, em
Istambul, no Rio de Janeiro, em Madri, em Nova York, em Santiago, em Brasília.
Elas ainda queimarão em muitos outros e imprevistos lugares, recolocando o que
é separado pelo espaço em uma série convergente no tempo. Por mais que alguns
procurem se convencer do contrário, por mais que agora o fogo pareça ter se
retraído, as ruas não pararam de queimar desde então, elas só deslocaram suas
intensidades. É importante lembrar disso, pois há algo que pode existir apenas
quando as chamas explodem em uma coreografia incontrolada de intensidades
variáveis. Por isso, diante de ruas queimando não há de se correr, não há de se
gritar, há apenas de se perguntar: o que fala o fogo? O que se diz apenas sob a
forma do fogo?
Quem
ouvir o fogo queimar nas ruas perceberá que ele diz sempre a mesma coisa: que o
tempo acabou. Não apenas que não temos mais tempo, mas, principalmente, que não
há mais como contar o tempo que está a nascer como uma possibilidade mais uma
vez presente. Um tempo que não se conta mais, que não se narra mais, que não se
habita mais tal como até agora se habitou. Esse tempo produzirá suas narrativas
e seus habitantes e queimará o tempo no qual narrávamos e habitávamos e contará
com números que não conhecemos e terá tensões que não saberíamos como deduzir e
despossuirá e não será mais medido como instante ou duração e será outro ao fim
e ao cabo.
Quem
ouvir o fogo perceberá que ele também diz outra coisa: que não há mais lugar.
Em 2013, quando, no Brasil, as ruas começaram a queimar, uma jornalista
entrevistou um manifestante. Ao final, ela perguntou seu nome: "Anota aí,
eu sou ninguém". De fato, a frase não poderia ser mais clara. Como um
Ulisses redivivo diante do gigante Polifemo, que agora parece vir de todos os
lados, ele encontrou na negação de si a astúcia maior para conservar seu
próprio destino.
Por mais
paradoxal que possa inicialmente parecer, "Eu sou ninguém" é a mais
forte de todas as armas políticas. Pois quem controla o modo de visibilidade e
nomeação, controla o que irá aparecer e como os circuitos de afetos se
construirão. Por isso, a negatividade sempre foi uma astúcia daqueles que compreendem
que a liberdade passa pela capacidade de destituir o Outro da força de
enunciação dos regimes de visibilidade possíveis. "Eu sou ninguém" é,
na verdade, a forma contraída de: "Eu sou o que você não nomeia e não
consegue representar". Para existir, é necessário fazer a linguagem
encontrar seu ponto de colapso. Nós somos apenas lá, onde a linguagem encontra
seu ponto de colapso. Na verdade, existir é colocar em circulação um vazio que
destitui, uma nomeação que quebra os nomes. Se me permitirem, é necessário ser
um sujeito antipredicativo.
URGÊNCIAS
Contra
esse tempo e esse espaço, o poder inventa todas as formas de urgências, de
ataques terroristas, de crises econômicas, de violência estatal. Ele exige uma
solidariedade à situação atual forjada no medo e no gozo. Poucos são os que
aderem à situação atual a partir de uma ética da convicção; a grande maioria
adere simplesmente sem crença. O que não poderia ser diferente, já que o poder
atual baseia-se na mobilização contínua da ausência de saída, da ausência de
escolha. Sua lógica é a lógica do sufocamento. Essa é uma das mais miseráveis
ironias de nosso tempo: um regime que prega a livre-escolha legitima-se através
da insistência contínua de que não temos escolha.
Não há
outro caminho, diz o mantra dos economistas-jornalistas, consultores de sistema
financeiro especializados em se salvar na base do assalto ao dinheiro público.
E só há uma forma de levar as pessoas a acreditarem não ter escolhas: há de se
gerir e produzir continuamente o medo, gerir situações de emergência que se
tornam regra, criar um regime que se sustenta na contradição de ser, ao mesmo
tempo, liberal e militarista, permissivo e restritivo, que prega a liberdade
individual mas que grampeia seu telefone. Um regime que invade sua privacidade
em nome de sua segurança.
Por isso,
ele necessita que ataques terroristas reverberem no mundo inteiro, com imagens
se repetindo obsessivamente, comentadas por jornalistas com seu espanto
ensaiado, para afinal alimentar mais ataques com essa promessa tácita de
sucesso de audiência, para arrastar todos os que caíram sob a lógica do
ressentimento social à promessa de fim do anonimato e de protagonismo encarnado
no papel principal na cena mundial.
O gosto
macabro pela visibilidade de eventos de violência espetacular é apenas a prova
da necessidade contínua de catástrofes e de circulação de insegurança como
prática de governo. Como já dizia Durkheim, e isso nossos governos sabem bem, o
crime não é uma patologia social, mas um dispositivo fundamental para o fortalecimento
da coesão. Por isso, nunca houve e nunca haverá sociedade sem crime. Através do
crime, a sociedade fortalece seu sentimento de unidade contra o dano sofrido,
ela volta à vida por ter um risco de desagregação à espreita. Ela precisa do
crime. Na governabilidade atual, o crime não é algo que se combate, ele é algo
que se gerencia. Tudo fica mais fácil quando o governo se reduz a um gabinete
de crise. Isso talvez nos explique por que nossa época passará à história
exatamente como o momento em que a crise, em todas as suas formas, virou uma
forma de governo. O ideal do neoliberalismo é transformar a prática de governo
na gestão de um gabinete infinito de crise.
Isso é
facilitado pelo fato de o neoliberalismo ser, mais do que uma doutrina
econômica, um discurso moral. Sua necessidade se impõe a nós como uma injunção
moral, como uma moral baseada na coragem enquanto virtude. Coragem para assumir
o risco de viver em um mundo no qual só se sobreviveria através da inovação, da
flexibilidade e da criatividade. Assumir riscos no livre-mercado aparece
atualmente como a expressão maior de maturidade viril, como saída da minoridade
a que estariam submetidos aqueles pretensamente infantilizados pela demanda de
amparo do Estado-providência. Esse mantra leva os sujeitos a acreditarem que,
se eles fracassaram economicamente, é por culpa absolutamente individual, por
culpa de sua incapacidade de se reinventar, de se "reciclar", como
uma garrafa PET.
Enquanto
essa moral do risco simulado era brandida em voz alta, dois economistas
italianos (Guglielmo Barone e Sauro Mocetti) divulgaram em 2016 um sintomático
estudo mostrando como o sobrenome das pessoas ricas em Florença são, em larga
medida, os mesmos de 1427 a 2011. Certamente deve ser pelo mérito e pela
capacidade que essas famílias tiveram de educar seus filhos para terem coragem
diante do risco. Até porque, diante da primeira crise, o Estado irá salva-los,
como salvou o Citibank, o BNP/Paribas, o Deutsche Bank e a tanto outros durante
séculos. O que se diz atualmente é: contra esse patrimonialismo explícito
travestido de "mérito", contra esse rentismo que se faz passar por
"coragem", não há escolha.
Há de se
ter clareza desse ponto para compreender um paradoxo aparente. Costumamos
acreditar que de todo acontecimento emerge um novo sujeito político. Mas nosso
tempo tem mostrado como todo acontecimento produz também múltiplos sujeitos que
procuram, com todas suas forças, negar que o tempo acabou e que o lugar
implodiu. Eles se servem da abertura produzida pelas chamas que queimam nossas
ruas para usar o fogo na caldeira que cozinha o festim de sentimentos reativos
com seus golpes brancos, suas fronteiras, suas bandeiras nacionais, sua
ressurreição de arcaísmos. Foram esses golpes e essas fronteiras e essas
bandeiras e esses arcaísmos que nos fizeram perder até agora e inocular
melancolia em alguns daqueles que poderiam estar no campo de batalha. Mas
lembremos a eles de forma clara e segura: nós nunca fomos derrotados.
É
verdade, nós perdemos várias vezes, mas nunca fomos derrotados. Pois nossas
derrotas são, na verdade, o fogo alto que forja o aço de nossas vitórias. Toda
verdadeira vitória é fruto da elaboração profunda sobre perdas. Ela reverbera o
desejo animal de nunca mais perder. Por isso, só vence quem caiu e clama com paciência
por uma segunda chance. Ela virá, mais cedo do que esperamos. É isso que nos
leva a afirmar que tais perdas não são derrota alguma. Talvez o traço mais
sublime e incompreendido da filosofia hegeliana seja a certeza de que as
feridas do Espírito são curadas sem deixar cicatrizes. Isso significa muita
coisa, entre elas que nada, absolutamente nada, terá a força de bloquear
definitivamente a possibilidade de realizarmos nosso destino. Há momentos em
que esse destino fala baixo, mas ele nunca se cala, e é isso o que importa.
No
entanto, é certo que nada nos exime de nos perguntarmos por que nossas perdas
têm sido tão constantes nos últimos tempos. Por que as ruas estão queimando
desde 2008, por que nossas ruas queimando desde 2013 não produziram ainda as transformações
que poderiam produzir? Por que essa força efetiva da reação? Várias são as
razões que poderiam ser levantadas, mas talvez seja o caso de se deter diante
de uma delas. A saber: porque não temos mais um corpo e não há, nem nunca
haverá, política possível sem corpo.
Se
quisermos voltar a vencer, precisaremos de um corpo. Teremos que aprender a
dizer, como David Cronenberg: "Vida longa à nova carne". Insurreição
não é emergência. Uma insurreição não é necessariamente a emergência de um novo
sujeito político. A insurreição pode ser a explosão bruta da revolta, mas, para
que essa revolta forje um sujeito emergente,é necessário ainda mais um esforço.
Só mais um esforço, se quiserdes ressoar a emergência.
VLADIMIR
SAFATLE, 43, professor de filosofia da USP, é colunista da Folha.
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