segunda-feira, 7 de julho de 2025

Nós contra eles? Para além disso: nós por nós, Veny Santos ,FSP

 Quando levanto e saio para o mundo, mantenho o costume de olhar atenciosamente para o meu bairro. Por dentro e por fora. Sinto como se o espaço e o tempo nunca tivessem se entendido aqui. Oscilam entre as casas que levaram décadas para instalar portões a trancafiar espiadas curiosas —também de dentro e de fora— e as pessoas cujo apertado cômodo nunca ganhou outro aposento para ventilar o cansaço dos dias de quem trabalha e, de fato, constrói a materialidade da vida e das histórias não contadas. Um pessoal que não pode reclamar do pouco que tem, senão já é visto como perigoso. Ingrato e perigoso esse pessoal.

A imagem mostra várias mãos segurando barras amarelas em um ônibus. As mãos são de diferentes pessoas, algumas com unhas pintadas e outras com luvas. O fundo é desfocado, mas é possível ver parte do interior do ônibus, com assentos e outros passageiros.
Passageiros em ônibus do Terminal Rodoviário Nicolau Delic, em São Caetano do Sul - Rafaela Araújo/Folhapress

Ao caminhar por onde cresci, reparo no silêncio que impera atualmente. Antes, nos contrastantes anos 1990, praticamente toda residência disputava os matinais ouvidos alheios com íntimas trilhas sonoras. A sinfonia dos insistentes que, mesmo exaustos, precisavam de mais um gole de etílico ânimo, fosse para cuidar do lar, fosse para anestesiar a mente surrada que só conseguia se equilibrar com o corpo quando ambos seguravam um ao outro para não cair na completa desgraça em que tudo e todos pareciam sempre laborar contra eles. Os insistentes orquestravam como sobreviver ao dia de cada vez —terapêutico para uns, neurotizante para outros.

Onde está o barulho senão para dentro dos portões do peito? O silêncio dos insistentes nunca foi, nem será, ode à domesticação. Assim como a ópera das insaciáveis sanguessugas falhou e falhará na execução do clímax que deveria elitizar a experiência entre parasitas e hospedeiros: o momento no qual o crepúsculo da paz entre quem explora e quem é explorado, afinal, anoitece os ânimos. Festejam os fartos ricos, servem os mirrados pobres. Não por acaso, Hegel segue difícil, quase indecifrável, tão relido quanto lido. Se fosse simples a tal questão falsamente tratada como "do momento" —a de quem serve e quem é servido, rendida à maldição da eterna introdução, contentar-se-ia o povo com manchetes rasas e afins. O povo não está contente, sabe-se. Uma hora o sangue seca.

"Nós contra eles". E o que tem o pobre contra o rico? O que tem o pobre, objetivamente? Vão falar —ou escrever— sobre essa gente toda ou pior: por essa gente toda. Vão classificar, categorizar, vivissectar, resumir e concluir que qualquer desagrado que expressem revelará sua genética traidora, ingrata, codificada e gravada à base de nigrosina nesta massa tingida. O que tem o pobre contra o rico senão a insistência?

Todo dia saem de casa um pobre e um intelectual da pobreza —que pobre não é. Um tem milhares de questões, contradições, perspectivas, ideias para trocar e outras para trancafiar na sagaz habilidade de não dar pano para conversa mole ou ficar se explanando em redes sociais. O outro, apenas a singular obsessão por experimentar o que experimentaram antropólogos em tempos nos quais o olhar etnográfico não se distinguia tanto do savânico.

Avista-se um pessoal que não pode reclamar do muito que lhe tiram, senão já é visto como perigoso. Ingrato e perigoso esse pessoal.

Quando levanto e saio para o mundo, entre o "nós contra eles" e o "eles contra nós", mantenho o costume de repetir: na real, sempre foi e sempre será nós por nós.


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