Causou alguma estranheza a
aproximação feita na coluna passada (19/6) entre modernismo e romantismo.
Analogias desse tipo nunca são exatas, mas esses dois movimentos de ideias
tinham em comum o impulso de romper regras, a exaltação de um eu espontâneo e a
busca de inspiração nas fontes irracionais e nas sociedades e épocas ditas
"primitivas". Mantiveram também uma atitude hostil em face da máquina
e do progresso técnico, apesar de numerosas exceções, desde logo a de artistas
futuristas como os poetas Marinetti e Maiakóvski.
Talvez não seja mecânico demais
especular que todo surto de desenvolvimento tecnológico tende a gerar como
contrapartida alguma reação de recusa inconsciente e de idealização nostálgica
da natureza. Se for assim, torna-se tentador perceber o romantismo como réplica
ideológica à primeira revolução industrial (tear e máquina a vapor) e o
modernismo como seu equivalente em relação à segunda (eletricidade e motor a
combustão).
Por mais que o computador pessoal
embutido em telefones móveis interligados não pareça tanto se comparado aos
avanços da virada de século anterior (telefone, lâmpada elétrica, automóvel,
cinema, rádio e avião foram criados entre 1880 e 1905), não resta dúvida de que
estamos em meio a mais um desses surtos tecnológicos. Não por acaso,
presenciamos também uma das mais poderosas ondas periódicas de idealização da
natureza, ressaltada agora pelas evidências de que estamos exaurindo recursos e
ameaçando o futuro das espécies, inclusive a nossa.
Ao se tornar campanha popular, que
varre as instituições culturais em todos os quadrantes, da pré-escola à mídia,
a mentalidade ambientalista adquire um maniqueísmo didático, quando não
beligerante e autoritário. Dado que as teorias críticas da sociedade moderna,
como o marxismo e a psicanálise, mergulharam em crise intelectual, o que
sobressai no caos ideológico é uma espécie de rousseauismo difuso, em que a
sociedade aparece como "má" e a natureza como "boa".
Não é exatamente essa a imagem da
natureza que a teoria de Darwin permitiu vislumbrar. O abalo que seu advento
provocou, na segunda metade do século 19, era religioso, conforme aparecia pela
primeira vez uma explicação plausível para a complexidade dos seres vivos que
dispensava a criação divina. Mas é viável ser religioso e darwinista; basta
imaginar que Deus tenha engendrado as leis da seleção natural da mesma forma
que as da gravidade ou as da termodinâmica.
O maior abalo foi moral; a natureza
afável, bem-aventurada, próspera e harmoniosa dos românticos não existia. Desde
Malthus, talvez o autor que mais influenciou Darwin, o que irrompia era uma
natureza cruel, avara, na qual plantas e animais se reproduzem além dos meios
de subsistência, sobrevivendo no limiar da fome, forçados a uma luta implacável
uns contra outros. Uma hipótese científica, confirmada pela genética no século
20, dava materialidade à concepção de Hobbes segundo a qual, na natureza, a
vida é "solitária, miserável, sórdida, brutal e curta".
Claro que a natureza não é boa nem
má, somos nós que lhe atribuímos tais predicados imaginários. Ela é
perfeitamente amoral, admitindo uma só exceção à lei do mais forte, que é a
daquele capaz de iludir o mais forte por dissimulação. Alguns arranjos,
bastante raros e instáveis, configuram um toma lá dá cá que é a matriz da qual emergiram
todos os sistemas morais e jurídicos dos humanos.
O segundo abalo foi ocasionado pela
síntese científica entre darwinismo e genética no decorrer do século passado.
Brilhante historiador desse período, o naturalista inglês Richard Dawkins
concebeu uma metáfora aterradora ao imaginar que os seres vivos são como
autômatos, fantoches ou zumbis comandados por partículas alojadas em suas
células, os genes. Nós, "máquinas desajeitadas", nascemos e morremos,
mas os genes perduram; em certo sentido, como verdadeiras divindades, eles nos
"usam" na forma de veículo rumo à eternidade.
Ao adquirir
consciência dessa situação terrível, tudo o que os humanos fazem, quando
melhoram suas condições de vida e inventam propósitos fantasiosos para um mundo
sem sentido, implica uma revolta contra a natureza, uma insubordinação perante
as limitações que ela impõe, uma astúcia para superá-las. O homem é o ser que
reforma a si mesmo reformando a natureza. Por mais que desejemos e tenhamos de
entrar em concórdia com ela, o que define nossa espécie é esse antagonismo
essencial.
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