domingo, 17 de julho de 2016

Economista Eduardo Giannetti lança 'Trópicos Utópicos', OESP


‘Trópicos Utópicos’, do economista Eduardo Giannetti, fala da utopia mobilizadora da alma brasileira, avessa ao culto do bezerro de ouro
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Antonio Gonçalves Filho,
O Estado de S.Paulo
26 Junho 2016 | 06h00
Foto: GABRIELA BILO | ESTADAO CONTEUDO

Antônio Gonçalves Filho
O professor e economista mineiro Eduardo Giannetti, 59 anos, após publicar sete livros – dois deles premiados com o Jabuti –, chega ao oitavo com uma mensagem otimista para a nação, a de que existe, sim, uma utopia mobilizadora da alma brasileira capaz de confirmar a profecia do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942) – a do Brasil como o país do futuro. Seu livro, Trópicos Utópicos, que será lançado amanhã, 27, às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2.073), é bem diferente da última obra literária de Giannetti, A Ilusão da Alma (2010), estreia do autor na ficção, até porque, desta vez, trata-se de uma obra ensaística.
A Ilusão da Alma é um romance sobre a paixão pelo saber, em que um professor solitário fica ainda mais esquivo após a retirada de um tumor cerebral. Já Trópicos Utópicos é um livro para levantar os ânimos, uma reunião de 124 micro ensaios sobre os três mitos da modernidade – ciência, tecnologia e crescimento econômico – e os impasses advindos da crença desmedida neles. Para finalizar, a quarta parte do livro apresenta um esboço da utopia de Giannetti.
Na contramão dos estudos que analisaram a identidade do Brasil com base em nossas raízes – e, portanto, retrospectivos –, Giannetti propõe um exercício prospectivo. Só para lembrar: Fellini, o cineasta autor de A Doce Vida, dizia que o verdadeiro realista é o visionário. Giannetti, economista, apresenta suas credenciais, transitando no mundo do PIB com a mesma facilidade com que pisa no território da filosofia e da antropologia.
O desafio a que se propôs foi descobrir como o Brasil pode confrontar os mitos da modernidade e apresentar ao mundo dos “poderosos civilizados” um modelo alternativo de vida, uma existência de justa medida, em que a razão apolínea possa conviver pacificamente com a paixão dionisíaca dos nativos e africanos que contribuíram para a formação cultural do povo brasileiro.
Surpreende que um professor com uma biblioteca tão organizada, em que até mesmo um estranho pode localizar em cinco segundos onde está Diderot, Nietzsche ou Schopenhauer, volte-se para as culturas pré-modernas. Caberia a natureza nesse mundo erudito? A resposta está no próprio processo de elaboração do livro, escrito em Minas, onde nasceu o autor, que testemunhou em Tiradentes o renascimento de uma área verde que julgava condenada, na serra de São José, impressionante vitória contra a degradação ambiental graças à ação da comunidade local.
“A biodiversidade da nossa geografia e a sociodiversidade da nossa história” são, segundo ele, “os principais trunfos brasileiros de uma civilização em crise”. É preciso, diz Giannetti, que o Brasil abandone a ideia de não poder ser original e sempre mimetizar o modelo estrangeiro, a começar pelo culto irracional do PIB como métrica do sucesso – “O Brasil, aliás, se arruinou por causa dessa métrica”, arremata. Para isso, recomenda que “seja preservada a chama da vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa”, não dispensando a disposição tupi “para a alegria e o folguedo”. Evocação do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade? Sim, admite o professor, acrescentando à genealogia dos “canibais” modernos que mais o influenciaram os antropólogos Darcy Ribeiro, Eduardo Viveiros de Castro e Antonio Risério.
Giannetti concedeu esta entrevista justamente no dia em queA Utopia, de Thomas More, completou exatos 500 anos, livro inspirador de socialistas utópicos como Proudhon. “O que ele propõe é que nos dediquemos mais à utopia prospectiva, algo que os ingleses no Renascimento fizeram muito bem, de Francis Bacon ao próprio More”, avalia. “Nos EUA, durante a Grande Depressão, nasceu a utopia do sonho americano, mas, no Brasil, tivemos Oswald de Andrade, o mais ousados dos utopistas”, diz, referindo-se ao desdobramento do manifesto canibal do agitador paulista, que propôs deglutir a herança cultural europeia.
O legado de Oswald foi além do tropicalismo na música, no teatro e nas artes visuais, ao resgatar uma língua não catequizada e o valor das culturas ameríndias, embora tivesse pouco ou nenhum contato com ela, como ressalva o próprio Giannetti. Em todo caso, o Novo Mundo, segundo o economista, foi “palco da mais colossal e ousada experiência transcultural na história universal”. A violência do conquistador foi brutal, tanto na América ibérica como anglo-saxônica, mas o autor observa que ela é distinta, na medida em que os portugueses “já tinham um contato de oito séculos com pessoas de pele escura”. Os jesuítas, além disso, mostraram maior empatia com os indígenas que os puritanos protestantes ingleses, conclui. “Não sem razão, a despeito de toda a violência, os portugueses aderiram aos valores da cultura negra, a tal ponto que os deuses africanos sobreviveram aqui, e não nos EUA”.
Esse é outro ponto que coloca Giannetti em choque com seus contemporâneos. Assim como Wittgenstein implicou com James Frazer ao criticar sua análise dos rituais primitivos, Giannetti implica com a defesa intransigente do cientista Richard Dawkins de uma interpretação exclusivamente científica do mundo, expurgando Deus (ou deuses) dessa história. “Wittgenstein, aliás, costumava dizer que, mesmo que todas as questões científicas fossem respondidas, a ciência não responde a questões morais ou explica a morte”, lembra. “Não gosto de Dawkins, pois ele transforma a ciência na mais obtusa das religiões”, justifica. “E ele não é um caso isolado num mundo dominado pelo cientificismo raso”, acrescenta.

Giannetti revela ter “alergia” à religião como instituição, mas, entre Darwin e Deus, fica com os dois – o naturalista britânico, lembra, levava a sério questões espirituais. Quando vai para Minas, o autor parece que fica mais perto do Criador, ou, pelo menos, do que considera ser a paz celestial de que falava Valéry num texto de 1935, em que já alertava para o desaparecimento do ócio interno – e bem distante do lazer cronometrado. A degradação da sensibilidade do homem moderno é o que mais preocupa Giannetti, ao criticar a “lógica competitiva e calculista do mundo do trabalho”. Estamos, segundo ele, perdendo “alguma coisa muito valiosa da dimensão da vida, aquilo que Rousseau chamava de disposição lúdica e amável, que os povos europeus não têm mais e que intriga todos os viajantes que chegam aos trópicos”.

Nem criança, nem adulto. Um embate sobre o trabalho infantil, OESP

 

A sociedade brasileira criou, nas últimas décadas, a criança e o jovem descartáveis, melancólica técnica de controle da natalidade e de eutanásia social
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José de Souza Martins,
O Estado de S.Paulo
26 Junho 2016 | 06h00

Foto: EPITACIO PESSOA | AE

José de Souza Martins
À medida que cresce o número de notícias sobre a delinquência juvenil, sobre o envolvimento de crianças na criminalidade, sobre a violência praticada por adolescentes nas escolas públicas e gratuitas até contra a própria escola, os colegas e os professores, as notícias sobre o envolvimento de crianças e adolescentes com drogas, no uso e no tráfico, é cada vez mais frequente ouvir questionamentos sobre a proibição legal do trabalho infantil e juvenil: “Se estivessem trabalhando, não estariam disponíveis para a maldade, o crime, a vagabundagem, a violência”. À vista de rapagões de 15 anos devotados à vadiagem, muitos acham que lhes cairia bem o mesmo duro trabalho que recai sobre os ombros de franzinos garotos já responsáveis pelo sustento da própria família.
Quem visita as cracolândias da cidade de São Paulo tem diante dos olhos a antevisão do Apocalipse da sociedade brasileira, jovens esparramados pelo chão, misturados com o lixo que eles próprios produzem, fartos de droga e faltos de esperança, de destino, inúteis quanto às obrigações sociais que cabem a todos. O roubo da infância pelo trabalho é um crime, mas o roubo do viver do jovem de rua, vitimado pelo emprego na violência, nos assaltos e no tráfico, é crime maior. Qual a opção: o ruim ou o péssimo? Quando o dilema é esse e continuamos a fazer enganosos discursos ufanistas sobre o progresso social do Brasil, o que mais nos resta se não temos nem mesmo a lucidez crítica para encarar de frente o que nos corrói e destrói como nação? A sociedade brasileira criou, nas últimas décadas, a criança e o jovem descartáveis, melancólica técnica de controle da natalidade e de eutanásia social.
Muitas vezes, a sabedoria das pessoas comuns e simples, que fazem esses comentários em favor do trabalho também pelos menores de idade, é mais questionadora do que a sabedoria profissional dos sábios de gabinete, os que não conseguem compreender o modo como enxergam e interpretam a tragédia os que sofrem direta ou indiretamente a degradação que nos consome.
Vivemos num cenário de valores sociais e morais opostos, perdidos no movimento pendular entre os extremos que não somos. Indicação de que esta sociedade não tem um eixo ético de referência que lhe permita discernimento quanto ao que é socialmente necessário para assegurar integração e participação social de todos. Não temos um projeto de futuro e mal cabemos no presente.
Ingressei numa fábrica com 11 anos de idade. Não doeu. Ajudou na sobrevivência. Procuro compreender a reação de quem entende que o trabalho infantil e juvenil é educativo, um bem e não um mal, como procuro compreender o questionamento da proibição do trabalho para os menores de idade, tido como ato que os privaria da infância. Mas não creio que o dualismo ideológico, tão brasileiro e tão inútil, nos ajude a resolver com urgência esse verdadeiro crime de lesa-pátria que é tornar os imaturos adultos muito antes do tempo.
Em São Paulo, o número de jovens infratores apreendidos cresceu de 8 mil, em 2000, para 14.400 em 2012. Diminui o número de adultos infratores e cresce o de menores infratores. As novas gerações estão em perigo. Em 2014, no Brasil, segundo o IBGE, trabalhavam 554 mil crianças entre 5 e 13 anos de idade. Um aumento de 9,5% em relação ao ano anterior. Eram trabalhadores de roça 62% dos infantes dessa faixa de idade, um indício de que, em relação a eles, o Bolsa Família fracassou. Deveria assegurar que se dedicassem exclusivamente à escola, pelo dinheiro da Bolsa libertados das carências que os levam a ganhar o pão nosso de cada dia com o suor do próprio rosto. A Bolsa não é um presente, uma dádiva, mas um pagamento pelo trabalho de frequentar a escola que os liberta do trabalho precoce na terra. Ir à escola e estudar são considerados na roça trabalho de criança, como puxar enxada é o dever dos adultos.
A proibição do trabalho infantil e juvenil é uma medida necessária e justa. Criança é para ser criança e adolescente é para ser adolescente. Eles têm muito que fazer, que é próprio da idade, como brincar, fantasiar, crescer, socializar-se segundo os valores mais nobres da sociedade em que nasceram. Mas, num país como o Brasil, a proibição do trabalho infantil e juvenil é completamente hipócrita. Não o seria se o Estado brasileiro tivesse adotado e efetivado algumas medidas correlatas e necessárias, como a do ensino em tempo integral. Proibir o trabalho e deixar as crianças na rua, expostas ao assédio de traficantes, malandros e bandidos é uma irresponsabilidade e um crime. Crianças e adolescentes trabalham porque do dinheiro desse trabalho suas famílias carecem.
Alguém poderá achar que este texto é politicamente incorreto. Eu também acharei isso se me convencerem que a proibição do trabalho dos imaturos, sem alternativa, para deixá-los à mercê de traficantes, ladrões e profissionais da violência e da violação dos direitos alheios é propriamente um direito e algo que se possa considerar politicamente correto.

José de Souza Martins. É sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Uma Arqueologia da Memória Social(Autobiografia de um Moleque de Fábrica), Ateliê Editorial.

Sobre a calamidade

Desastre natural está na origemdo vocábulo, mas a catástrofe que se abate sobre a sede da Olimpíada é feita pelo homem
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Sérgio Rodrigues,
O Estado de S.Paulo
26 Junho 2016 | 06h00

Foto: JOSE LUCENA | PAGOS

Sérgio Rodrigues
Calamidade, todo mundo sabe, é catástrofe. O dicionário Houaiss esmiúça seu sentido assim: “grande perda, dano, desgraça, destruição, especialmente a que atinge uma vasta área ou grande número de pessoas”. O estrago calamitoso vem da antiguidade e, pelo menos no começo, era provocado por fenômenos naturais: o substantivo latino calamitas aparece no clássico dicionário Saraiva com o sentido principal de “perda das colheitas causada pela geada”. Não se trata, claro, de dizer que essa é sua única aplicação correta. Raríssimas palavras passam a vida confinadas no bercinho semântico em que nasceram, e já ao desembarcar no português, nos últimos anos do século 16, a calamidade tinha se expandido para abranger desgraças variadas. Nenhuma delas envolvia àquela altura gestão desastrosa, gastos maiores que a arrecadação, atraso de salários, corrupção crônica, serviços públicos à míngua, irresponsabilidade fiscal e compromisso deslumbrado com um evento caro demais para o orçamento da casa. Mas também isso mudou.
A calamidade que se abateu sobre o estado do Rio de Janeiro às vésperas dos Jogos Olímpicos dispensou por completo a contribuição dos fenômenos naturais, a menos que, injustamente, se ponha na conta do mar bravio – e não da incompetência, neste caso do poder municipal – o desabamento da ciclovia de São Conrado. Aquele escandaloso sinal de calamidade foi enviado ao mundo quase dois meses antes do decreto no qual, na sexta-feira 17, o governador em exercício Francisco Dornelles oficializou o deus nos acuda. Ou, para ser preciso, o Brasília nos acuda. Já na última terça, 21, o Planalto anunciou um “apoio financeiro” de R$ 2,9 bilhões ao governo fluminense para que ele leve a cabo a preparação do Rio de Janeiro para a Olimpíada.
Como se não bastasse a epidemia de zika, a decretação do estado de calamidade pública é propaganda negativa para um evento gerador de turismo, mas não disfarça sua esperteza no campo legal ao determinar a suspensão temporária de ritos e processos administrativos que, em condições normais, impediriam um estado inadimplente de receber empréstimos e remanejar recursos já destinados a outras áreas. O texto assinado por Dornelles menciona como justificativas para o ato extremo a “grave crise econômica” e a “queda da arrecadação, principalmente a observada no ICMS e nos royalties e participações especiais do petróleo”. Queixa-se da “interrupção da prestação de serviços públicos essenciais” e acena com a perspectiva de “total colapso na segurança pública, na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental”. Nada disso é pouco. Tudo isso está ausente da definição que o Houaiss apresenta para “calamidade pública”, essa figura do vocabulário jurídico: “interrupção da vida normal de uma coletividade, por efeito de desgraça pública, catástrofe ou desastre decorrentes de fenômenos naturais ou de lutas armadas”.
Na falta de geadas, furacões e guerras, servem políticos mesmo. Além da pindaíba carioca e fluminense, isso acaba de ser demonstrado também pelo tiro no pé dado pela Grã-Bretanha ao votar a favor de seu desligamento da Europa – mais um motivo para fazer de calamidade a Palavra do Mês.
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A história do termo não chega a ser calamitosa, mas passa longe de ser segura. Etimologia nunca foi ciência exata.
Antigamente era considerado pacífico entre os estudiosos que seu radical provinha do latim calamus, este por sua vez um decalque do grego kálamos, “haste, cana, junco” – o mesmo sentido principal que ainda hoje conserva em nossa língua a pouco usada palavra “cálamo”. Mas qual é a relação entre o talo da planta e o desastre, a hecatombe, a praga? Bem, calamitas seria “o prejuízo causado por um temporal, por uma saraivada que quebrasse as hastes verdes do trigo” (palavras do filólogo brasileiro Antenor Nascentes), deixando no chão da lavoura um desolador tapete de cálamos partidos. Calamidade.
A tese foi abraçada por pesos pesados da matéria, como o catalão Joan Corominas, e ainda hoje pode ser considerada dominante. Uma hipótese alternativa é que “calamidade” teria um parentesco perdido com “incólume”, ou seja, intacto. Convenhamos que a tese do cálamo faz muito mais sentido para os leigos – mas isto, embora possa ser visto como vantagem, é o ponto em que se apegam os revisionistas da calamidade. Um desses é o linguista austríaco Alois Walde, que considerava o elo pastoril com os cálamos um exemplo de “etimologia popular”, como os estudiosos chamam as associações que o povo estabelece entre uma palavra nova e outra já conhecida em resposta a semelhanças fortuitas de som e sentido. Muitas vezes, essas ligações imaginárias interferem no desenvolvimento do vocábulo recém-chegado, mas não estão em sua origem. Um exemplo clássico de etimologia popular é “floresta”, que o português foi buscar no século 14 no francês antigo forest (hoje forêt). No princípio de sua aclimatação na Península Ibérica, a palavra era furesta ou foresta. Ocorre que muitos ouvintes achavam que teria alguma coisa a ver com “flor”. Não tinha, mas passou a ter.

SÉRGIO RODRIGUES É JORNALISTA, CRÍTICO LITERÁRIO E ESCRITOR, AUTOR DO ROMANCE O DRIBLE (COMPANHIA DAS LETRAS)