Desastre natural está
na origemdo vocábulo, mas a catástrofe que se abate sobre a sede da Olimpíada é
feita pelo homem
Sérgio
Rodrigues,
O Estado de S.Paulo
O Estado de S.Paulo
26 Junho 2016 | 06h00
Foto:
JOSE LUCENA | PAGOS
Sérgio
Rodrigues
Calamidade, todo mundo sabe, é catástrofe. O dicionário Houaiss
esmiúça seu sentido assim: “grande perda, dano, desgraça, destruição,
especialmente a que atinge uma vasta área ou grande número de pessoas”. O
estrago calamitoso vem da antiguidade e, pelo menos no começo, era provocado
por fenômenos naturais: o substantivo latino calamitas aparece no clássico
dicionário Saraiva com o sentido principal de “perda das colheitas causada pela
geada”. Não se trata, claro, de dizer que essa é sua única aplicação correta.
Raríssimas palavras passam a vida confinadas no bercinho semântico em que
nasceram, e já ao desembarcar no português, nos últimos anos do século 16, a
calamidade tinha se expandido para abranger desgraças variadas. Nenhuma delas
envolvia àquela altura gestão desastrosa, gastos maiores que a arrecadação,
atraso de salários, corrupção crônica, serviços públicos à míngua,
irresponsabilidade fiscal e compromisso deslumbrado com um evento caro demais
para o orçamento da casa. Mas também isso mudou.
A calamidade que se abateu sobre o estado do Rio de Janeiro às
vésperas dos Jogos Olímpicos dispensou por completo a contribuição dos
fenômenos naturais, a menos que, injustamente, se ponha na conta do mar bravio
– e não da incompetência, neste caso do poder municipal – o desabamento da
ciclovia de São Conrado. Aquele escandaloso sinal de calamidade foi enviado ao
mundo quase dois meses antes do decreto no qual, na sexta-feira 17, o
governador em exercício Francisco Dornelles oficializou o deus nos acuda. Ou,
para ser preciso, o Brasília nos acuda. Já na última terça, 21, o Planalto
anunciou um “apoio financeiro” de R$ 2,9 bilhões ao governo fluminense para que
ele leve a cabo a preparação do Rio de Janeiro para a Olimpíada.
Como se não bastasse a epidemia de zika, a decretação do estado de
calamidade pública é propaganda negativa para um evento gerador de turismo, mas
não disfarça sua esperteza no campo legal ao determinar a suspensão temporária
de ritos e processos administrativos que, em condições normais, impediriam um
estado inadimplente de receber empréstimos e remanejar recursos já destinados a
outras áreas. O texto assinado por Dornelles menciona como justificativas para
o ato extremo a “grave crise econômica” e a “queda da arrecadação,
principalmente a observada no ICMS e nos royalties e participações especiais do
petróleo”. Queixa-se da “interrupção da prestação de serviços públicos
essenciais” e acena com a perspectiva de “total colapso na segurança pública,
na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental”. Nada disso é
pouco. Tudo isso está ausente da definição que o Houaiss apresenta para
“calamidade pública”, essa figura do vocabulário jurídico: “interrupção da vida
normal de uma coletividade, por efeito de desgraça pública, catástrofe ou desastre
decorrentes de fenômenos naturais ou de lutas armadas”.
Na falta de geadas, furacões e guerras, servem políticos mesmo.
Além da pindaíba carioca e fluminense, isso acaba de ser demonstrado também
pelo tiro no pé dado pela Grã-Bretanha ao votar a favor de seu desligamento da
Europa – mais um motivo para fazer de calamidade a Palavra do Mês.
*
A história do termo não chega a ser calamitosa, mas passa longe de
ser segura. Etimologia nunca foi ciência exata.
Antigamente era considerado pacífico entre os estudiosos que seu
radical provinha do latim calamus, este por sua vez um decalque do grego
kálamos, “haste, cana, junco” – o mesmo sentido principal que ainda hoje
conserva em nossa língua a pouco usada palavra “cálamo”. Mas qual é a relação
entre o talo da planta e o desastre, a hecatombe, a praga? Bem, calamitas seria
“o prejuízo causado por um temporal, por uma saraivada que quebrasse as hastes
verdes do trigo” (palavras do filólogo brasileiro Antenor Nascentes), deixando
no chão da lavoura um desolador tapete de cálamos partidos. Calamidade.
A tese foi abraçada por pesos pesados da matéria, como o catalão
Joan Corominas, e ainda hoje pode ser considerada dominante. Uma hipótese
alternativa é que “calamidade” teria um parentesco perdido com “incólume”, ou seja,
intacto. Convenhamos que a tese do cálamo faz muito mais sentido para os leigos
– mas isto, embora possa ser visto como vantagem, é o ponto em que se apegam os
revisionistas da calamidade. Um desses é o linguista austríaco Alois Walde, que
considerava o elo pastoril com os cálamos um exemplo de “etimologia popular”,
como os estudiosos chamam as associações que o povo estabelece entre uma
palavra nova e outra já conhecida em resposta a semelhanças fortuitas de som e
sentido. Muitas vezes, essas ligações imaginárias interferem no desenvolvimento
do vocábulo recém-chegado, mas não estão em sua origem. Um exemplo clássico de
etimologia popular é “floresta”, que o português foi buscar no século 14 no
francês antigo forest (hoje forêt). No princípio de sua aclimatação na
Península Ibérica, a palavra era furesta ou foresta. Ocorre que muitos ouvintes
achavam que teria alguma coisa a ver com “flor”. Não tinha, mas passou a ter.
SÉRGIO
RODRIGUES É JORNALISTA, CRÍTICO LITERÁRIO E ESCRITOR, AUTOR DO ROMANCE O DRIBLE (COMPANHIA DAS LETRAS)
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