No dia 3 de julho de 1951, mais de seis décadas após a abolição da escravidão no Brasil, o presidente Getúlio Vargas sancionou o que seria a legislação embrionária de combate ao racismo no país: a Lei Afono Arinos (nº. 1.390/1951).
A criação da legislação ocorreu após um caso de racismo contra uma artista afro-americana em um show na cidade de São Paulo. Após se apresentar no Teatro Municipal, Katherine Dunhan foi impedida de se hospedar em um hotel cinco estrelas.
Dunhan, que também era antropóloga e ativista contra o racismo nos EUA, denunciou o racismo no Brasil em diversas entrevistas, o que fez com que o episódio ganhasse repercussão internacional.
Os sete artigos da Lei Afonso Arinos, apresentada pelo deputado Afonso Arinos, definiu como contravenção penal a discriminação racial em comércios, hotéis e órgãos públicos. O projeto foi aprovado em unanimidade na Câmara dos Deputados um ano após do caso de Dunhan.
À época, a medida fixou a pena simples de 15 dias a três meses. A pena simples não era cumprida em prisão e podia ser no regime semi-aberto ou por pagamento de multa em dinheiro, no valor de 5 mil cruzeiros.
‘Para inglês ver’
Em entrevista à Alma Preta, o advogado e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) Hédio Silva Jr. destaca que a lei foi um movimento que confirma o protagonismo negro na luta antirracista no Brasil.
A criminalização do racismo já era demandada pelos movimentos negros do Brasil. Em 1930, 20 anos antes da lei ser criada, a Frente Negra Brasileira se articulava politicamente para exigir a criação de leis antirracistas.
“Aprovada meio século depois da chamada abolição, a finada lei Afonso Arinos é um atestado do grau de permanente tensão racial e de violações de direitos que marcaram o período republicano, além de atestar o protagonismo negro”, defende.
De acordo com informações do Senado Federal, a extinta legislação praticamente não saiu do papel. Um levantamento realizado pelo historiador Jerry Dávila aponta que apenas 23 pessoas foram acusadas de racismo após a sanção entre 1951 e 1989. Destas, somente seis foram condenadas.
Silva recorda que, em 1966, realizou uma pesquisa de aplicabilidade da Lei Afonso Arinos, que localizou nove casos julgados e absolvidos em mais de 40 anos de vigência da legislação, que permaneceu em vigor até ser atualizada com a lei 7.716, de 1989.
“Zero impacto. Uma lei literalmente para inglês ver, ainda que atendendo uma reivindicação do Movimento Negro, mais especificamente do 1º Congresso Nacional do Negro, organizado em 1950, em São Paulo, com ativa participação de Abdias do Nascimento, cuja pauta de reivindicações incluía a criminalização do racismo”.
Passados 75 anos da promulgação, a ausência de aplicação adequada pelo Judiciário e a falta de atualização dos dispositivos legislativos seguem denunciadas por pesquisadores, ativistas e pela comunidade negra em geral.
A tese de doutorado desenvolvida por Renan Bulsing dos Santos no Programa de Pós-graduação em Sociologia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta que casos que poderiam ser enquadrados como racismo acabam rebaixados a injúria simples pelo judiciário brasileiro, uma tipificação de crime com penas menores e maior facilidade de prescrição.
Hédio Silva aponta três fatores que, segundo ele, dificultam o enfrentamento jurídico do racismo no Brasil. Segundo o advogado, há juízes criminais que desrespeitam a legislação e tomam decisões baseadas em ideologia, e não em provas.
O jurista também destaca o foco dos advogados em normas penais, em detrimento de normas civis e trabalhistas que também têm o enfrentamento ao racismo como tema.
“Há um foco demasiadamente excessivo dos advogados na norma penal, esquecendo que o sistema jurídico brasileiro é absolutamente vasto e rico em leis cíveis, trabalhistas, etc. Elas permitem amplo enfrentamento da violência racial”, conclui.
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