A
sociedade brasileira criou, nas últimas décadas, a criança e o jovem
descartáveis, melancólica técnica de controle da natalidade e de eutanásia
social
José
de Souza Martins,
O Estado de S.Paulo
O Estado de S.Paulo
26 Junho 2016 | 06h00
Foto:
EPITACIO PESSOA | AE
José de
Souza Martins
À medida que cresce o número de notícias sobre a delinquência
juvenil, sobre o envolvimento de crianças na criminalidade, sobre a violência
praticada por adolescentes nas escolas públicas e gratuitas até contra a
própria escola, os colegas e os professores, as notícias sobre o envolvimento
de crianças e adolescentes com drogas, no uso e no tráfico, é cada vez mais
frequente ouvir questionamentos sobre a proibição legal do trabalho infantil e
juvenil: “Se estivessem trabalhando, não estariam disponíveis para a maldade, o
crime, a vagabundagem, a violência”. À vista de rapagões de 15 anos devotados à
vadiagem, muitos acham que lhes cairia bem o mesmo duro trabalho que recai
sobre os ombros de franzinos garotos já responsáveis pelo sustento da própria
família.
Quem visita as cracolândias da cidade de São Paulo tem diante dos
olhos a antevisão do Apocalipse da sociedade brasileira, jovens esparramados
pelo chão, misturados com o lixo que eles próprios produzem, fartos de droga e
faltos de esperança, de destino, inúteis quanto às obrigações sociais que cabem
a todos. O roubo da infância pelo trabalho é um crime, mas o roubo do viver do
jovem de rua, vitimado pelo emprego na violência, nos assaltos e no tráfico, é
crime maior. Qual a opção: o ruim ou o péssimo? Quando o dilema é esse e
continuamos a fazer enganosos discursos ufanistas sobre o progresso social do
Brasil, o que mais nos resta se não temos nem mesmo a lucidez crítica para
encarar de frente o que nos corrói e destrói como nação? A sociedade brasileira
criou, nas últimas décadas, a criança e o jovem descartáveis, melancólica
técnica de controle da natalidade e de eutanásia social.
Muitas vezes, a sabedoria das pessoas comuns e simples, que fazem
esses comentários em favor do trabalho também pelos menores de idade, é mais
questionadora do que a sabedoria profissional dos sábios de gabinete, os que
não conseguem compreender o modo como enxergam e interpretam a tragédia os que
sofrem direta ou indiretamente a degradação que nos consome.
Vivemos num cenário de valores sociais e morais opostos, perdidos
no movimento pendular entre os extremos que não somos. Indicação de que esta
sociedade não tem um eixo ético de referência que lhe permita discernimento
quanto ao que é socialmente necessário para assegurar integração e participação
social de todos. Não temos um projeto de futuro e mal cabemos no presente.
Ingressei numa fábrica com 11 anos de idade. Não doeu. Ajudou na
sobrevivência. Procuro compreender a reação de quem entende que o trabalho
infantil e juvenil é educativo, um bem e não um mal, como procuro compreender o
questionamento da proibição do trabalho para os menores de idade, tido como ato
que os privaria da infância. Mas não creio que o dualismo ideológico, tão
brasileiro e tão inútil, nos ajude a resolver com urgência esse verdadeiro
crime de lesa-pátria que é tornar os imaturos adultos muito antes do tempo.
Em São Paulo, o número de jovens infratores apreendidos cresceu de
8 mil, em 2000, para 14.400 em 2012. Diminui o número de adultos infratores e
cresce o de menores infratores. As novas gerações estão em perigo. Em 2014, no
Brasil, segundo o IBGE, trabalhavam 554 mil crianças entre 5 e 13 anos de
idade. Um aumento de 9,5% em relação ao ano anterior. Eram trabalhadores de
roça 62% dos infantes dessa faixa de idade, um indício de que, em relação a
eles, o Bolsa Família fracassou. Deveria assegurar que se dedicassem
exclusivamente à escola, pelo dinheiro da Bolsa libertados das carências que os
levam a ganhar o pão nosso de cada dia com o suor do próprio rosto. A Bolsa não
é um presente, uma dádiva, mas um pagamento pelo trabalho de frequentar a
escola que os liberta do trabalho precoce na terra. Ir à escola e estudar são
considerados na roça trabalho de criança, como puxar enxada é o dever dos
adultos.
A proibição do trabalho infantil e juvenil é uma medida necessária
e justa. Criança é para ser criança e adolescente é para ser adolescente. Eles
têm muito que fazer, que é próprio da idade, como brincar, fantasiar, crescer,
socializar-se segundo os valores mais nobres da sociedade em que nasceram. Mas,
num país como o Brasil, a proibição do trabalho infantil e juvenil é
completamente hipócrita. Não o seria se o Estado brasileiro tivesse adotado e
efetivado algumas medidas correlatas e necessárias, como a do ensino em tempo
integral. Proibir o trabalho e deixar as crianças na rua, expostas ao assédio
de traficantes, malandros e bandidos é uma irresponsabilidade e um crime.
Crianças e adolescentes trabalham porque do dinheiro desse trabalho suas
famílias carecem.
Alguém poderá achar que este texto é politicamente incorreto. Eu
também acharei isso se me convencerem que a proibição do trabalho dos imaturos,
sem alternativa, para deixá-los à mercê de traficantes, ladrões e profissionais
da violência e da violação dos direitos alheios é propriamente um direito e
algo que se possa considerar politicamente correto.
José de
Souza Martins. É sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros
livros, autor de Uma Arqueologia da Memória Social(Autobiografia
de um Moleque de Fábrica), Ateliê Editorial.
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