segunda-feira, 13 de junho de 2016

“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro” | Entrevista com Giorgio Agamben, do Blog da Boitempo


Peppe Salvà entrevista Giorgio Agamben.
“O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro”, afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, 16-08-2012.
Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, foi definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.
Segundo ele, “a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governabilidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas”. Assim, “a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo,  aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.
A tradução é de Selvino  J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [e tradutor de três das quatro obras de Agamben publicadas pela Boitempo], para o site do Instituto Humanitas Unisinos.
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O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe  financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itália. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?
“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.
Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro.  Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro.  O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu  o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.
A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?
A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado.  Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e o passado têm um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.
O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com  as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.
Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado  ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.
A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?
Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma  da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua. 
O mal-estar, para usar um eufemismo, com que  o ser humano comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a  condição italiana ou é de algum modo inevitável?
Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais  econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.
O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?
Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia  em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos  sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmeras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível  aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão.
A  grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal,  o futuro será melhor do que o presente?
Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.
Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a aula que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação  de como sair do xeque-mate no qual a arte contemporânea está envolvida.
Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade  que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercantilização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.
Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente – a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um  objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.
Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercantilização.  Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com não-obras e performances em museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.
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Sobre o autor
Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra, influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre seus principais livros destacam-se Homo sacer (2005), Estado de exceção (2005), Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008) e O reino e a glória (2011), os quatro últimos publicados no Brasil pela Boitempo Editorial.
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sábado, 11 de junho de 2016

Rede Globo avalia adoção do LTE Broadcast Henrique Medeiros, do Mobile Time



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A Rede Globo pode aderir ao LTE Broadcast, tecnologia que permite distribuir conteúdo de vídeo simultaneamente para diversos usuários de dispositivos móveis através da rede 4G, especialmente dentro de eventos, como torcedores em estádios de futebol.
A rede de TV realizou reuniões recentemente com fornecedores da tecnologia sobre a possibilidade de fazer testes e adicionar a tecnologia como opção em sua programação. Uma fonte próxima ao tema revelou a MOBILE TIME que as conversas para adoção da tecnologia estariam avançadas. Procurada, a Globo informou por meio de nota que ainda está em “fase inicial de estudos da tecnologia e acompanhamento de testes.”
No Brasil, a Claro, NET e Globosat realizaram testes do LTE Broadcast em fevereiro deste ano durante o torneio de tênis Rio Open, com apoio dos fornecedores da tecnologia, Ericsson, Qualcomm e Samsung. No entanto, o executivo ligado ao tema informa que as conversas entre fornecedores e a operadora “esfriaram”.  Em resposta a este noticiário, a Claro respondeu que está trabalhando para viabilizar o uso comercial da tecnologia.
Além da Globo, as conversas estariam adiantas com a TIM. O modelo de negócios, principal entrave para adoção da tecnologia, já estaria praticamente definido. A ideia seria imitar o formato implementado na Coreia do Sul, com transmissão de eventos. A TIM por sua vez preferiu não comentar sobre o tema ou sobre futuros testes do LTE Broadcast pela operadora no Brasil.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Que torna nossas metrópoles insustentáveis


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Reportagem sobre uma praga brasileira. Empreiteiras financiam partidos, dirigem Orçamento das cidades e as moldam segundo seus próprios interesses
Por Thales Schmidt e Vinicius Martins | Imagem: Chensiyuan
“A liberdade da cidade é muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações”. David Harvey no artigo “A Liberdade da Cidade” – publicado no livro Cidades Rebeldes – reflete que, além de usufruir de bens e serviços indispensáveis à vida, a população urbana deve ter o direito de decidir os rumos do desenvolvimento das cidades.
Desde 2001 algumas ações do governo federal têm apontado nessa direção: aplicação do Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), criação do ministério das Cidades, obrigatoriedade da elaboração de Planos Diretores Participativos para municípios com mais de 20 mil habitantes – e a implantação do programa Minha Casa, Minha Vida.
O objetivo dessas iniciativas é definir a função social da cidade e da propriedade, além de buscar soluções para problemas crônicos causados pelo crescimento desordenado e excludente das áreas urbanas. Os principais atingidos desse quadro são as populações de baixa renda, afetadas, principalmente, pela falta de acesso aos equipamentos e serviços públicos essenciais como praças, escolas, hospitais, transporte e segurança.
Apesar da criação desses mecanismos de regulação, a direção do solo urbano ainda não pertence aos interesses da sociedade civil. O mercado imobiliário e as empreiteiras são os responsáveis por determinar a finalidade da cidade e por expor a crise prática da legislação de terras nos municípios.
A disputa pela cidade
“O que está comandando as cidades não é interesse público, não é interesse coletivo, não é justiça social, não é sustentabilidade. Tudo isso é discurso, todas as grandes cidades brasileiras têm ótimos planos diretores, a nossa legislação é muito avançada, conhecimento técnico nós temos, mas nós estamos perdendo na correlação de forças, estamos levando uma surra na disputa com aqueles que têm lucro com as cidades, com o crescimento das cidades”, analisa Ermínia Maricato, professora titular do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, e autora da proposta de criação do ministério das Cidades do Brasil.
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Quase um quarto, 22%, ou 1,39 milhão dos 6,2 milhões habitantes do Rio de Janeiro moram em aglomerados subnormais, as chamadas favelas

O Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstra que 84% da população brasileira vivem em áreas urbanizadas. Estima-se que existam no país cerca de 6329 aglomerados subnormais – ou favelas -, de acordo com o último Censo do IBGE. O número engloba um total de 3.224.529 domicílios e 11.425.644 pessoas.
Segundo Juliano Costa Gonçalves, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Especulação imobiliária na formação de loteamentos urbanos: um estudo de caso, a prática acarreta em conflitos na organização espacial das cidades. “O processo de urbanização costuma ser bastante caro, como levar saneamento e energia a novos bairros, por exemplo. Quando essas áreas ficam presas no processo de especulação, aumenta-se a área urbana. Então, você obriga que algumas pessoas morem nas regiões mais periféricas da cidade, que muitas vezes não têm bons processos de urbanização nesses lotes”, ressalta Gonçalves.
O pesquisador lista outras consequências da especulação, como a falta de acesso à infraestrutura pública básica: iluminação, ruas asfaltadas, escolas e hospitais. No rol de problemas produzidos pelo mercado de terras estão os vazios urbanos e o alargamento do tecido urbano, a segregação sócio-espacial – provocada pela alta no preço dos aluguéis – e complicações na configuração do transporte público. Ou seja, os pobres não frequentam os mesmos parques, escolas e hospitais que os ricos.
Gislene Pereira, professora da Universidade Federal do Paraná, analisa que esse processo é cíclico dentro do sistema capitalista, portanto está presente em outros países do globo. “A cidade que temos é resultado da forma pela qual ela é produzida, ou seja, dentro das regras de produção de um sistema capitalista. Esse modelo de cidade, portanto, é o mesmo em todos os países capitalistas. E os problemas – segregação espacial, periferia, carência de infraestrutura, etc – estão presentes em todas as cidades capitalistas; não é, portanto, uma exclusividade do Brasil”, explica.
Para lidar com déficit de habitação no país, o governo federal criou em 2009 o Minha Casa, Minha Vida. Atualmente, o programa encontra-se em sua segunda fase e promete entregar mais 1,6 milhões de moradias até o fim do ano. No entanto, o projeto costuma receber críticas de especialistas em urbanismo. “O maior déficit habitacional no Brasil está na faixa de 0 a 3 salários mínimos, faixa que praticamente não é atendida pelo programa Minha Casa Minha Vida. Nessa situação, o deficit deve aumentar, como efetivamente está ocorrendo”, aponta Gislene Pereira.
Gislene complementa que: “o problema do deficit habitacional deveria ser enfrentado de modo articulado com a questão do uso da terra urbana. Não falta terra, o que falta, de fato, é terra urbanizada a preço acessível. Dessa forma, somente se pode pensar em atender às demandas por habitação se houver uma política de controle do uso do solo de forma a garantir a oferta de terra urbanizada a preços acessíveis para a população de menor renda”.
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O aumento dos valores dos contratos de venda e aluguel em São Paulo costuma ser maior do que a inflação do mesmo período. Em 2010 – um ano após o lançamento do Minha Casa, Minha Vida – o valor do aluguel mais que dobrou em comparação com a inflação do período. Fonte: Índice Fipe Zap
Empreiteiros: os senhores da cidade
O Minha Casa, Minha Vida é um dos programas dos programas federais que vêm garantindo uma poderosa fonte de recursos para as empreiteiras nacionais – empresas responsáveis por empreendimentos vitais para a cidade como obras rodoviárias, túneis, pontes e até a construção dos edifícios e casas em que habitamos. Nesse setor, a unidade usada para calcular projetos, valores e lucros é a dos bilhões.
Boa parte do fluxo de dinheiro que alimenta o caixa dessas empresas vem do Estado brasileiro por obras dos governos federal e estaduais. Segundo levantamento da revista O Empreiteiro, referência do setor de engenharia, em 2013 a União foi responsável por investir R$ 12,416 bilhões em obras e serviços por meio de licitações públicas; todavia, o valor ainda é menor que o investido pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco no mesmo período: R$ 18,415 bilhões.
Os eventos esportivos sediados pelo Brasil – Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro – têm garantido contratos gordos para o setor. De acordo com reportagem da Agência Pública, os dez maiores contratos dos dois eventos chegam a quase R$ 30 bilhões. Programas federais com grandes investimentos em obras de infraestrutura econômica e social, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – iniciado em 2007 e já na segunda edição – também fazem a festa das corporações.
O casamento entre poder público e empreiteiras, contudo, é de longa data. O historiador Pedro Campos, professor da Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro, analisou a formação das principais empreiteiras brasileiras durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) em sua tese de doutorado. “Os empreiteiros já eram importantes no país antes da ditadura, eles crescerem muito na década de 50, em especial nas obras de Juscelino Kubitischeck (1956-1961). Naquele período eles começam a se organizar em nível nacional, criaram organizações de empreiteiros e a partir dessas organizações passam a ter um papel político e uma atuação junto ao aparelho de Estado muito decisiva”.
Durante o regime ditatorial, a situação melhorou ainda mais para as empreiteiras nacionais. Por meio do decreto 64.345, o militar e então presidente Artur da Costa e Silva (1964-1966) determinou que obras de infraestrutura no Brasil só poderiam ser feitas por empresas nacionais. A medida ajudou o estabelecimento das empreiteiras brasileiras em áreas com forte concorrência internacional, como a construção de hidrelétricas, engenharia industrial, de petróleo e outras obras urbanas. A decisão fez com que as empreiteiras nacionais fossem as únicas beneficiadas pelos grandiosos projetos desenvolvimentistas dos militares. A restrição a empresas estrangeiras só foi revertida em 1991 pelo presidente Fernando Collor (1990-1992).
“Existia um cenário ideal para o desenvolvimento dessas empresas, tanto é que elas se desenvolveram de maneira bastante expressiva ao longo do regime. E no final da ditadura o que a gente tinha eram grandes conglomerados econômicos, aquelas empreiteiras que já eram grandes e importantes na ditadura no final eram multinacionais que atuavam em vários lugares do mundo”, aponta Pedro Campos.
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Evolução da receita bruta das empreiteiras nacionais mostra consolidação da baiana Norberto Odebrecht como a principal empresa do setor, única a ultrapassar R$ 10 bilhões de receita bruta em 2013. Fonte: O Empreiteiro
As grandes empreiteiras nacionais são superlativas em todos os seus números. A maior delas, a construtora baiana Norberto Odebrecht, teve em 2013 uma receita bruta de R$ 10,149 bilhões e conta com mais de 125 mil funcionários. Segundo ranking das maiores empresas do setor realizado pela revista O Empreiteiro, 40% da receita no período se deve a contratos com o setor público.
Levantamento do Estadão Dados apontou que a mesma Odebrecht foi responsável por doar R$ 47,7 milhões para a campanha eleitoral de 2014. Outra gigante do setor, a Andrade Gutierrez doou R$ 93,6 para o mesmo pleito. Ainda assim, nenhuma doadora supera o grupo pecuarista JBS, com R$ 357,3 milhões aplicados. Na legislação atual, as empresas podem doar até 2% do faturamento bruto do ano anterior ao da eleição.
O fim das doações empresariais foi um dos pontos das mudanças políticas votadas pela Câmara dos Deputados. Embora a extinção das doações de empresas tenha sido aprovada em primeira votação, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) conseguiu reverter a decisão por meio de manobra regimental no dia seguinte; procedimento repetido durante a votação da redução maioridade penal. Os temas ainda serão votados novamente por Câmara e Senado.
“O grande problema urbano no Brasil hoje é o financiamento de campanha. Está tudo absolutamente comprometido com o financiamento de campanha. Nas nossas grandes cidades, e pequenas e médias também, grande parte da orientação do crescimento urbano é dada por interesses de proprietários de uma elite local, das grandes empreiteiras, do capital imobiliário e dos parlamentares e prefeitos de plantão. É assim que se dá a decisão, por exemplo, de ao invés de construir metrô, você construir viaduto, ponte, túnel, para transporte rodoviário e não transporte sobre trilho”, indica Erminia Maricato.
O historiador Campos também aponta o financiamento privado como um grande problema do sistema político atual: “Se uma empresa que presta serviços ao Estado pode (financiar campanhas), é obvio que isso vai dar problemas. Se uma empreiteira que faz obra pública para um governo pode financiar campanha, isso é realmente algo que vai gerar problemas, distorções e uma rede de propinas”. Para o historiador, as doações são uma espécie de “investimento” para conquistar “protagonismo e poder politico”.
Desde 2014, a Polícia Federal e Ministério Público Federal investigam uma rede de corrupção e distribuição de propinas na Petrobras, os investigadores acreditam que o esquema ocorra há pelo menos 10 anos. A chamada Operação Lava Jato apura o desvio de bilhões de reais de licitações e contratos da maior estatal brasileira, dinheiro usado para pagar altos funcionários corruptos e políticos. PT, PMDB, PP, PSDB e PSB abrigam 47 políticos alvos de investigação por participação no esquema. A lista de suspeitos inclui os presidentes da Câmara Federal e do Senado: Eduardo Cunha e Renan Calheiros – ambos do PMDB.
O processo se notabilizou por ir além das operações policiais mais costumeiras no Brasil ao prender não só agentes políticos e públicos corruptos, mas também os corruptores. Altos dirigentes de empreiteiras como OAS, Camargo Corrêa, Mendes Júnior, Queiroz Galvão, UTC, Engevix, Iesa e Galvão Engenharia estão respondendo pelos desvios praticados. Marcelo Odebrecht, presidente da maior empreiteira nacional, e Otávio Marques de Azevedo, chefão da Andrade Gutierrez, estão em prisão preventiva.
Regulação urbana
Ainda que o Brasil tenha mecanismos de regulação do tecido urbano que são referências mundiais – como edificação compulsória, o IPTU progressivo, a Desapropriação para Fins de Reforma Urbana, o Direito de Preempção, a Outorga Onerosa e outras ferramentas – os interesses das empreiteiras costumam prevalecer na decisão da política urbana das cidades brasileiras. No meio do caminho da efetivação do direito à cidade estão a política e o jogo de correlação de forças que traça os rumos do desenvolvimento e emprego de verbas públicas.
A aplicação de tais instrumentos legais seria vital no atual contexto de forte especulação imobiliária das médias e grandes cidades brasileiras. Entretanto, há uma crise prática que impede o efeitos da legislação no espaço urbano. “O que você tem agora é uma politica que é regressiva do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, da justiça social e territorial, do direito à cidade. Atualmente, as nossas cidades, com raras exceções, estão em um caminho regressivo”, analisa Ermínia Maricato.
“O planejamento tem que atuar sobre a lógica de produção do solo urbano, o que significa utilizar os instrumentos legais existentes para interferir na lógica de produção urbana individual, priorizando a questão coletiva. O Brasil, apesar de avançado na legislação, ainda está engatinhando na aplicação desses instrumentos. Como referência, citaria as cidades de Bogotá e Medellin, na Colômbia, que têm obtido bons resultados nas políticas urbanas”, aponta Gislene Pereira.
As cidades de Bogotá e Medellin têm priorizado os cidadãos para guiar o desenvolvimento urbano. Em pouco mais de oito anos, os municípios investiram em mobilidade urbana planejada e sustentável, segurança cidadã com a remodelação das polícias e um novo ordenamento do espaço público. As melhorias colocam como foco as populações de baixa renda, dispondo para esses estratos sociais equipamentos públicos como escolas, bibliotecas, hospitais, praças e espaços de convivência, além de corredores para ônibus e ciclovias. Todas as obras fazem parte de uma política integrada de desenvolvimento urbano. Os resultados diminuíram os índices de violência urbana e colocaram as duas cidades entre as melhores indicadores de qualidade de vida da Colômbia.