segunda-feira, 28 de maio de 2012

Voo solo, in Carta Capital


Novo solteirismo, por 

Thomaz Wood Jr.

09.04.2012 07:39


O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre agora dá sentido a um fenômeno de massa. Se o inferno são os outros, então nossos contemporâneos parecem estar se movimentando para fugir das catacumbas sulfurosas. Segundo Eric Klinenberg, professor de Sociologia da Universidade de Nova York e autor do livro Going Solo: The extraordinary rise and surprising appeal of living alone (editora Penguin), cada vez mais pessoas optam por viver sozinhas.
O autor carrega nas tintas, embalado por um mercado editorial viciado em títulos de impacto, argumentos surpreendentes e fatos irrefutáveis, mas o livro tem méritos. Segundo Klinenberg, estamos presenciando uma inflexão histórica. Cultivamos, durante milênios, uma repulsa existencial e filosófica à solidão. “O homem que vive isolado, que é incapaz de partilhar os benefícios da associação política ou não precisa partilhar porque já é autossuficiente, não faz parte da pólis, e deve, portanto, ser ou uma besta ou um deus”, escreveu Aristóteles (apud Klinenberg).
As sociedades humanas se estruturaram em torno do desejo fundamental de os indivíduos viverem na companhia uns dos outros. O isolamento é frequentemente associado à punição. Uma criança mal comportada é separada de seus pares e colocada sozinha. Um prisioneiro malcomportado é trancafiado na solitária.
Entretanto, segundo Klinenberg, tudo isso está mudando. Nas últimas décadas, houve um aumento expressivo do número de homens e mulheres que passaram a viver voluntariamente sozinhos. O fenômeno é consequência do desenvolvimento econômico, que permite maior autonomia; da superação da lógica econômica do casamento, que dá maior liberdade às pessoas para buscar arranjos alternativos; da urbanização, que adensa as comunidades humanas; e da evolução das tecnologias de informação e de comunicação, que facilitam a interação entre as pessoas. Resultado: estamos casando mais tarde, prolongando o período entre o divórcio e o novo casamento, ou evitando um novo casamento, e escapando o quanto possível da possibilidade de viver com outra pessoa. É o novo solteirismo!
Nas grandes cidades norte-americanas, 40% das moradias têm um único ocupante. Em Washington e Manhattan, casos extremos, são 50%. E o fenômeno não se restringe aos Estados Unidos. Paris apresenta números superiores a 50% e, em Estocolmo, a taxa chega a 60%. China, Índia e Brasil, países em desenvolvimento, caminham no mesmo sentido.
Viver sozinho deixou de ser fonte de medo e causa de isolamento social. As vantagens são notáveis: -controle sobre a própria vida, liberdade de ação e melhores condições para perseguir atividades voltadas para a autorrealização. No imaginário social, vai surgindo um novo modelo ideal: o neossolteiro, um ou uma profissional de sucesso, -socialmente atuante e mestre de sua existência.
O fenômeno do novo solteirismo relaciona-se a outro fenômeno, maior, de enfraquecimento dos vínculos e das relações, que se manifesta na vida social e na vida profissional. Richard Sennet registrou a tendência no livro A Corrosão do Caráter (editora Record), no fim da década de 1990. De fato, o comprometimento dos indivíduos com instituições e organizações vem se fragilizando há algumas décadas. Hoje, transitamos por inúmeros grupos, empresas e comunidades, porém estabelecemos relacionamentos apenas tênues e temporários.
Nas empresas, depois de seguidas ondas de reestruturações, enxugamentos e terceirizações, os empregos “para toda a vida” estão quase extintos. Paradoxalmente, empresários e executivos continuam esperando alto grau de envolvimento e comprometimento de seus funcionários, e frustram-se quando não os conseguem. Com a ajuda de asseclas de recursos humanos, tentam tapar o sol com a peneira, programando palestras motivacionais, abraçando árvores e promovendo interlúdios culturais. Pouco adianta.
As novas gerações representam para as empresas um considerável desafio: os mais jovens são individualistas, inquietos e despudoradamente ambiciosos. Saltam de galho em galho corporativo sem olhar para trás. Habitam redes fluidas, sejam elas comunidades reais ou virtuais. São impacientes com o presente e ansiosos pelo futuro.
Neste admirável mundo novo, perde espaço o que é estável e profundo, ganha espaço o que é efêmero e superficial. Afirmam os profetas do mundo plano que terão vantagens os mais dinâmicos, os mais extrovertidos, aqueles com mais iniciativa e sem medo de errar, aqueles capazes de usar diligentemente seu capital social em prol da própria marca. E os incomodados que se mudem… de planeta?

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Chamando as coisas pelos seus nomes


RENATO LESSA - O Estado de S. Paulo
Há coisa de algumas semanas, um personagem sombrio, egresso do esgoto da memória nacional, deu seu testemunho a respeito do que andou a fazer durante a vigência do regime de exceção, implantado em março de 1964. Ex-delegado de polícia, o personagem ganhou notoriedade pela força de suas revelações sobre torturas, assassinatos e ocultamento de corpos de militantes da resistência ao descalabro. O livro encontra-se nas boas casas do ramo, e deve ser lido por quem tem estômago forte e um mínimo de apego à memória histórica. Se apenas, digamos, 10% do que diz correspondem à verdade, o efeito é estarrecedor.
No dia do lançamento, presidente afirmou que o grupo dos sete respeitará ‘pacto de democratização’  - Roberto Stuckert Filho/ ABR
Roberto Stuckert Filho/ ABR
No dia do lançamento, presidente afirmou que o grupo dos sete respeitará ‘pacto de democratização’
O saudoso deputado Ulysses Guimarães bem sabia do que estava a falar quando declinou seu ódio absoluto às ditaduras. Se vivo estivesse, e houvesse lido o relato do abjeto personagem, teria ali encontrado fartos motivos para sua aversão, que incidia sobre um regime que fez do suplício e da eliminação física prática corrente e meio de sustentação. Não é preciso aderir ao modismo das teorias a respeito da “biopolítica” para reconhecer que regimes políticos são inteligíveis pelo que fazem com os corpos de seus súditos. Regimes cuja sustentação exige o suplício e o assassinato de oponentes têm tradicional acolhida conceitual na história do pensamento político: são regimes despóticos, tiranias e estados de exceção.
A Comissão da Verdade, instalada há poucos dias pela presidente Dilma Rousseff, tem diante de si um desafio e uma oportunidade decisivos para fixar uma narrativa a respeito de história recente do país. Há duas ordens imediatas de objetivos, para a fixação de tal narrativa, de natureza incontornável: (1) elucidar, tanto quanto for possível, os parentes, amigos e o País sobre o paradeiro dos desaparecidos e (2) desfazer a funda assimetria instituída pelos termos da anistia, que tornou públicos os nomes e os atos dos presos políticos e ocultou os de seus perpetradores.

A anistia concedida em 1979 abrangeu, além dos então presos políticos, possíveis perpetradores de “crimes conexos”. Pelo eufemismo, estavam cobertas as ações do aparelho de repressão à dissidência política. A assimetria reside no fato de que a anistia concedida ao primeiro grupo – opositores ao regime -, por razão lógica, só pode ser concedida aos que reconhecida e publicamente praticaram atos julgados atentatórios à segurança nacional. É claro que isso não impede que a eventual descoberta posterior de ocorrência de ato dessa natureza tenha como implicação a aplicação da anistia. Mas o fato é que a viabilidade do usufruto da anistia por parte da esquerda exigiu a ostensão personalizada dos beneficiados.

Os perpetradores de “crimes conexos” foram agraciados por uma anistia generalizada, inespecífica e despersonalizada. Suas identificações não foram definidas como necessárias para o usufruto do perdão. Trata-se, é evidente, de assimetria forte e apenas mentes paranoicas podem supor que a possível reposição da simetria seja algo aparentado a “revanche”.
Mas, além desses dois objetivos , há ainda a valiosa oportunidade para a elucidação da natureza do regime vigente no País entre 1964 e 1985. Mais do que o inestimável serviço de inscrever na memória nacional os nomes e os paradeiros dos desaparecidos e de seus verdugos – em seus respectivos nichos -, trata-se de pôr à disposição dos brasileiros novos elementos para interpretar seu passado recente. O efeito principal poderá ser o da elucidação do que significa um regime de exceção com a implicação de que os que ocuparam sua direção devem ser chamados pelos nomes apropriados: ditadores, e não “presidentes”, como se pudesse haver alguma analogia com os que ocuparam a direção do País por força de procedimentos legítimos.

Independentemente do juízo que se possa fazer a respeito de Dilma Rousseff como chefe de governo, seu gesto como chefe de Estado inscreve-se em um dos momentos fortes da história republicana. A qualidade da peça lida pela presidente e a condensação política presente no ritual – mais do que completo e generoso, a ponto de incluir um presidente indigno e impedido – parecem à altura do fato nada trivial de termos na chefia de Estado – e no comando supremo das Forças Armadas – alguém que sentiu no próprio corpo o que significa uma ditadura. O consenso reunido representa o reconhecimento desse aspecto crucial.

O desconforto dos chefes militares na cerimônia mostra, lamentavelmente, quanto as forças sob seu comando têm dificuldade em se distinguir do que foi feito por alguns de seus antecessores. A cena beira o absurdo, pois afinal nada há no comportamento corrente dos militares brasileiros que autorize temor corporativo diante das atribuições da Comissão.

RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UFF, INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA E PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE

A justiça restauradora


Negociadores sul-africanos pós-apartheid optaram por anistiar quem admitisse publicamente ter violado direitos humanos, aplicando uma forma de justiça não destinada a 'punir', mas a 'curar'

20 de maio de 2012 | 3h 07
Desmond Tutu - O Estado de S.Paulo

Durante o período que antecedeu as eleições, os negociadores tiveram de decidir como lidar com o horrendo legado do passado recente. Algumas pessoas, em especial as que tinham feito parte do regime do apartheid, defendiam que uma anistia geral deveria ser promulgada a todos, de modo - assim imaginavam - que o passado seria simplesmente esquecido, não tornando reféns o presente e o futuro. Infelizmente, não existe mágica capaz de nos fazer dizer "agora, vamos esquecer o passado", que, então esquecido, morreria em silêncio. O passado tem uma capacidade inata de tirar todo tipo de esqueleto do armário para atormentar o presente. Perguntem ao general Pinochet.
George Santayana declarava frequentemente: "Quem esquece o passado está fadado a repeti-lo". Além disso, a anistia geral faz a vítima ser vítima uma segunda vez ao oficializar ou o que aconteceu - na verdade, não aconteceu - ou, ainda pior, o que teve pequena importância, de modo que as vítimas não vejam um encerramento da questão e acabem nutrindo ressentimentos que podem ter consequências nefastas para a paz e para a estabilidade por causa da agonia que envenena o espírito e faz ansiar pelo dia da vingança.
Já outros pensavam que o caminho mais fácil seria seguir o exemplo do tribunal de Nuremberg e levar a julgamento todos aqueles publicamente culpados ou suspeitos de cometer graves violações dos direitos humanos. Nuremberg aconteceu porque os aliados derrotaram os nazistas e optaram por impor o que chamaram de justiça dos vencedores. Em nosso caso, nem o governo promotor do apartheid nem os movimentos de libertação do Congresso Nacional Africano (CNA) e do Congresso Pan-Africanista (CPA) tinham a possibilidade de derrotar o lado adversário. Havia um empate em termos militares. É quase certo que as forças de segurança do regime do apartheid conseguiriam debelar qualquer plano de ataque pelo qual, no fim das contas, acabariam sendo apontadas como responsáveis. Além disso, a África do Sul não suportaria mais longos julgamentos, nem o já sobrecarregado sistema judicial conseguiria suportar o esforço.
Assim, os negociadores optaram por assumir um compromisso mútuo: anistia individual, em vez da anistia geral, em troca de toda a verdade a respeito do crime pelo qual se estava fazendo o pedido. "Anistia em troca da verdade?", muitos se perguntaram, com uma preocupação genuína. "E quanto à justiça? Isso não equivale a incentivar a impunidade?" Antes de tudo é necessário ressaltar que esse jeito de lidar com a situação foi proposto exclusivamente para esse delicado período de transição, ad hoc - de uma vez para sempre. Em vez de incentivar a impunidade, a opção escolhida para seguir adiante ressaltava a responsabilidade, já que quem procurasse a anistia deveria admitir ter cometido um crime. Inocentes e aqueles que alegavam inocência, obviamente, não necessitavam de anistia.
Alguns argumentaram que isso significaria deixar os culpados escaparem ilesos. Significaria mesmo?
Todos sabem como é difícil dizer "sinto muito". São duas das palavras mais difíceis de qualquer língua. Não acho fácil dizê-las nem na privacidade do meu quarto para minha esposa. Posso imaginar, portanto, o que deve ter significado para alguns deles terem de confessar publicamente, sob as lentes das câmeras de televisão. Era comum culpados serem considerados respeitáveis membros de sua comunidade. Provavelmente aquela seria a primeira vez que a família ouviria que aquele aparente bastião de virtude era, na verdade, membro de uma equipe policial responsável por torturas diárias de presos, ou que pertencia a um esquadrão da morte que tratava assassinatos como acidentes de percurso do depravado sistema de apartheid. O estigma da vergonha e da humilhação pública é um preço alto a se pagar, em alguns casos levando esposas ao choque e ao consequente pedido de divórcio.
Usar o argumento do "escapar ileso" significaria pensar apenas em termos de justiça punidora, cuja raison d'être é punir o perpetrador do crime. Há outro tipo de justiça: a restauradora, cujo propósito não é punir, mas curar. Ela estabelece como ponto central a humanidade até dos culpados das piores atrocidades, sem desistir de ninguém, acreditando na bondade essencial de todos que foram criados à imagem de Deus, defendendo que mesmo o pior de nós é filho de Deus e tem o potencial de ser uma pessoa melhor, alguém que pode ser salvo, reabilitado, que não precisa ser alienado, mas sim reintegrado à comunidade. A justiça restauradora acredita que um crime cause uma brecha, perturbe o equilíbrio social, o qual deve ser recuperado e a brecha, fechada, em um processo em que ofensor e vítima possam se reconciliar e retornar à paz.