domingo, 8 de janeiro de 2012

Na fome de leitura, o apreço à ciência


Flávio Pinheiro, OESP
Daniel Piza foi atilado leitor. Na topografia natural de sua sala havia permanente cordilheira de livros, como Edmundo Leite flagrou para o site do Estadão no dia seguinte de sua inverossímil ausência. De tempos em tempos Daniel removia para a redação montanhas de livros, avidamente disputados. Aquela barafunda continha a ampla latitude de sua curiosidade intelectual, servida no que ela tinha de melhor e pior em sua coluna dominical.
As listas de melhores do ano são o melhor legado dessa fome de leitura. Nelas há mais livros do que se pode ler numa vida inteira que não se esgotasse em 41 anos. Na lista de 2009 ele disse: "Tratei de mais de 80 livros neste ano". O verbo é "tratei", melhor e mais apropriado do que "li". É isso mesmo que se espera de uma antena, que perceba mais do que delimite (ele detestaria ser descrito como antena, embora Ezra Pound achasse sublime ser antena).
Sua antena era dotada de perspicácia com alto grau de acertos. Falava de preciosidades perdidas no mar de lançamentos. De Marca d’Água de Joseph Brodsky, em 2006. De O Último Leitor de Ricardo Piglia, no mesmo ano. Da notável antologia The Oxford Book of Modern Science, organizada por Richard Dawkins, de 2008. Do livro de memórias do arquiteto japonês Tadao Ando em 2010. De A Lebre com Olhos de Âmbar, de Edmund de Waal, em 2011. Livros na contramão do sucesso de vendas, da bitola do senso comum.
As listas, impregnadas por benditas e malditas idiossincrasias, exibiam algumas características marcantes. Driblavam a propensão autárquica que às vezes sitia o Brasil fazendo pescarias fora. Em 2009 falou de The Age of Wonder, monumento de Richard Holmes sobre o flerte do romantismo anglo-saxão do século 18 com as descobertas científicas. No mesmo ano, mencionou Viaje de la Ficción que Vargas Llosa dedicou à formidável literatura do uruguaio Juan Carlos Onetti. Nem um, nem outro ainda foram publicados no Brasil.
O avesso dessa moeda era o deslumbramento. Por exemplo, com tudo que Philip Roth escreveu. O olhar cosmopolita estufava certa pretensão - "Muita gente descobriu só agora os contos de John Cheever e Rodolfo Walsh", disse em 2010, ignorando descobertas bem anteriores. O mesmo olhar servia a julgamentos sumários. "Não há nada na ficção brasileira dos últimos 30 anos comparável a Roth, Sebald, Bolaño, McEwan ou mesmo Saer", escreveu em 2008. Fazia questão de remar contra cânones às vezes apenas para exibir musculatura. Isso está nas estocadas a 2066, de Roberto Bolaño, ou na necessidade de dizer que Filho Eterno não era o melhor livro de Cristóvão Tezza, embora ainda seja.
É louvável que em todas as suas listas a ciência e a divulgação científica sejam equiparadas ao melhor da produção dita humanista. Em todas elas há sempre um Eric R.Kandel, falando de memória, ou um António Damásio, redesenhando faculdades cerebrais.
Há exageros e omissões nas listas, como há em todas as listas. Em 2009 ignorouMonodrama, do poeta Carlito Azevedo. Em 2011 arrolou entre os livros do ano a biografia de Jorge Luis Borges, escrita por Edwin Williamsom, que num julgamento para lá de condescendente não passa de um livro mediano, assolado por alto teor de chatura.
Não era o último leitor, mas fará falta. Era um radar com ambição de farol, um guia com presunção de oráculo. Precisaria dobrar séculos como uma tartaruga para ler tudo o que deu a impressão de ter lido de cabo a rabo na sua curta vida. Deixa bibliotecas por devorar. Quem as lerá por nós?
FLÁVIO PINHEIRO É DIRETOR-GERAL DO INSTITUTO MOREIRA SALLES 

BBB no divã



Especialistas discutem por que o público ama odiar o reality

08 de janeiro de 2012 | 3h 10
ALLINE DAUROIZ - O Estado de S.Paulo
Quando fazia sua tese de doutorado pela Universidade Autônoma de Barcelona, em 2003 - que viraria o livro Por Que os Reality Shows Conquistam Audiências? (Ed. Paulus) -, a especialista em TV e conteúdos digitais Cosette Castro percebeu um fato curioso: quanto maior a escolaridade do entrevistado, mais ele jurava que não assistia a esse tipo de programa, mas era comum que essa mesma pessoa soubesse quem é o "eliminado" da semana ou qual a maior polêmica do reality show da vez.
O paradoxo não é restrito à Espanha. Nesta terça, quando a Globo estrear a 12.ª edição do Big Brother Brasil, às 22h15 (confira os novos participantes acima), enxurradas de manifestações inundarão de críticas os botequins e redes sociais. Críticas seguidas pela última frase de Pedro Bial ou por um xingamento ao vilão da temporada. Por que, então, as pessoas amam odiar o BBB, nosso reality de maior alcance e longevidade?
"Esse tipo de programa é marginalizado, relacionado à baixa cultura. As pessoas têm vergonha de dizer que assistem. É a hegemonia do saber da classe alta contra o saber popular", teoriza Cosette, professora de pós-graduação em Comunicação da Universidade Católica de Brasília.
Segundos especialistas, no Brasil, o sucesso do formato está ligado não só à curiosidade pela vida alheia, mas à edição, com elementos como amor, ódio, ciúme, competição, sexo e solidariedade, que fazem o êxito de qualquer história.
Com 35 anos de estudo e trabalho nos bastidores da TV, Gabriel Priolli, ex-diretor de programação da Cultura e hoje produtor independente, lembra que os participantes são, desde o início, convertidos em personagens.
"Um espectador criado numa cultura telenovelesca evidentemente fica fascinado pelo BBB. Mas assim como acontece com os noveleiros, desvalorizados socialmente pela 'perda de tempo' com um material audiovisual supostamente menor e idiotizante, o público do BBB não consegue assumir plenamente sua paixão pelo programa", acredita Priolli. "Fazem o jogo do 'assisto, mas falo mal'. Reclamam de uma TV de maior nível cultural, mas não a assistem, pois, caso a assistissem, as emissoras públicas liderariam a audiência."
Já para o sociólogo, jornalista e professor de Comunicação da USP Laurindo Leal Filho, quem assiste mesmo não gostando o faz por falta de opção. "Além do apelo por algo inusitado, expectativa criada pela previsibilidade da programação de TV, num país com baixo nível de leitura e possibilidades reduzidíssimas de diversão e entretenimento de baixo custo, a TV reina soberana, apesar de não agradar a todos", afirma.
Recordista brasileiro em participação em reality shows - e em polêmicas -, Alexandre Frota fez parte da primeira e mais vista Casa dos Artistas, e de duas versões lusitanas: A Fazenda e Primeira Cia. Na Record, idealizou, produziu e dirigiu A Fazenda e, agora, no SBT, prepara o reality de casais Vivendo com o Inimigo. Perito no assunto e em receber críticas, Frota acredita que as novas mídias ajudam no êxito do formato.
"A chave do sucesso, entre outras coisas, é esse julgamento. Tudo está em questionamento: aparência física, caráter, ética, vivência, oportunidades, moral, cultura e a polêmica. Então, falem, critiquem, discutam, mas assistam."

A vez do 'ecoísmo'


É hora de o 'egossistema baseado no eu' dar lugar ao ecossistema de vários atores sociais, diz economista do MIT

08 de janeiro de 2012 | 3h 00
Carolina Rossetti - O Estado de S.Paulo

As mensagens de ano-novo dos líderes europeus deram o tom do que o continente pode esperar em 2012. A chanceler alemã Angela Merkel assustou com o anúncio de "um ano sem dúvida mais difícil". O presidente Nicolas Sarkozy lamentou a crise não superada e preparou os ânimos dos franceses, que "terão as vidas testadas mais uma vez". Já no Brasil, com um discurso na mão contrária, a presidente Dilma Rousseff prometeu mais emprego e maior crescimento, ainda que moderado. "Estamos transformando um momento de crise em oportunidade e entrando numa era de prosperidade", garantiu ela no rádio.
Diante de uma Europa em crise e consumida por interesses nacionais, é preciso reinventar - Jon Nazca/Reuters
Jon Nazca/Reuters
Diante de uma Europa em crise e consumida por interesses nacionais, é preciso reinventar
Na avaliação do economista alemão Otto Scharmer - que esteve em São Paulo em dezembro a convite do Instituto de Democracia e Sustentabilidade -, a presidente Dilma tem fundamento para algum otimismo. Enquanto os "egoísmos nacionais" consomem a Europa e a "paralisia política" atrapalha os Estados Unidos, ele calcula que o ano pode ser próspero por aqui. "Grandes países como o Brasil têm enormes oportunidades, mas aproveitá-las dependerá de um modelo econômico que leve em consideração os principais desníveis da sociedade atual: o ecológico, o social e o espiritual". Três fatores que identifica como pilares da crise global.
Otto mora hoje em Boston, dá aulas no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e é fundador do Instituto Presencing, centro de pesquisas de inovação e empreendedorismo social e ambiental, sediado em Cambridge, nos Estados Unidos. Na esteira de um ano de agito nas ruas, o economista avalia que entramos numa era de ruptura. "Nosso desafio agora é conectar o mundo que está morrendo com o outro que está sendo parido, dolorosamente, e nesse processo, reinventar a economia, a educação e a democracia." Entenda como, a seguir.
A bolha agrícola

"O discurso da Europa e dos Estados Unidos é repleto de previsões sombrias. Na verdade, qualquer um que entenda o básico de economia e política levanta perspectivas desanimadoras na melhor das hipóteses. Então, o que está acontecendo? Vejo três tendências coincidindo. Primeiro, a ascensão dos Brics e o declínio relativo da Europa e dos Estados Unidos. Segundo, o temor de que a bolha financeira no Ocidente resulte numa década perdida, como a do Japão. E, terceiro, a ameaça de uma próxima bolha a estourar, a agrícola. A nossa produção de alimentos não é sustentável e levou à destruição de um terço das terras agricultáveis do mundo em 40 anos. Em paralelo, temos os egoísmos nacionais na Europa e a paralisia política entre republicanos e democratas nos Estados Unidos, o que impossibilita ao sistema político em ambos os continentes chegar a respostas adequadas em relação a essas tendências. Toda crise é um grande momento de oportunidade, mas, enquanto nos apegarmos ao passado, estamos apenas fazendo mais do mesmo.

1,5, 2,5 e 3
"Não acho que seja uma questão de otimismo ou de pessimismo. O que precisamos é de um novo modelo de pensamento econômico que vá além do falso discurso que vemos atualmente no Norte e no Sul. Esse discurso é o debate do século 20 entre os que são 'mais mercado' versus os 'mais governo'. A resposta, naturalmente, não está nessa dualidade. E sim em como podemos fortalecer a capacidade empresarial de inovar em grande escala. Como podemos reinventar o velho Estado de bem-estar do século 20 para que o governo permita a atividade empreendedora em vez de subsidiar a sua ausência? Grandes países como o Brasil têm enormes oportunidades, mas aproveitá-las dependerá da adoção de um novo modelo econômico que leve em consideração os três principais desníveis da sociedade de hoje: o ecológico, o social e o espiritual. Ou seja, como nos relacionamos com a natureza, com os outros e com nós mesmos. Resumo isso em três números: 1,5, 2,5 e 3. O primeiro representa a crise ecológica. Apesar de termos um só planeta, degradamos nosso capital natural numa escala brutal, usando os recursos de um planeta e meio, só para manter o nível atual de consumo. O desequilíbrio se manifesta nos desastres naturais, na escassez dos lençóis freáticos, nos preços de alimentos que dispararam. O segundo número representa a crise social. Há 2,5 bilhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. O 3 dá a magnitude da crise espiritual e expressa as taxas crescentes de depressão, exaustão e suicídio. No ano 2000, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, três vezes mais pessoas se suicidaram em relação àquelas que foram assassinadas. Políticas econômicas cegas a essas três divisões vão trazer sofrimento às suas populações e aos outros, mais cedo ou mais tarde. Na maioria dos casos, mais cedo.
Política de portas abertas

"Sinto que vivo em dois mundos. Um é o dos indicadores pessimistas que listei. Nele, as pessoas reagem às notícias com negação ou cinismo. Não sou depressivo porque vivo também num outro mundo, onde me conecto com os movimentos sociais, os empreendedores, os inovadores. Eles estão nos governos e no setor privado, começam com projetos pequenos, protótipos, ideias que vão amadurecendo e, às vezes, viram incríveis histórias de mudança. De uns anos para cá, o Brasil iniciou sua nova história. O país é uma inspiração, não só em termos de crescimento econômico. Também criou um novo paradigma de desenvolvimento, mais inclusivo. Outro exemplo concreto é a Indonésia. Depois dos atentados em Bali, em 2005, muitos achavam que o país ia se transformar no próximo Afeganistão e, basicamente, explodir numa guerra civil. Não aconteceu. Em vez disso, houve uma transição pacífica para a democracia. Como? Pela reinvenção do processo político e implementação de um modelo mais descentralizado de gestão, mais conectado com as demandas da população. Na Província de Bojonegoro, que tive a oportunidade de visitar esse ano, funcionários do governo se encontram semanalmente com a comunidade e são cobrados pela população. O que se fez ali foi fechar o ciclo de feedback entre governo e comunidade, eliminando uma comunicação mediada pela corrupção por uma de diálogo. Foi uma maneira de reinventar o processo democrático e fazer política com portas abertas.

Lições do ano velho
"Em 2011, vimos pessoas de todo o mundo se levantando contra instituições arcaicas baseadas na exclusão, como as tiranias do Oriente Médio, Wall Street e os megabancos. Isso me faz pensar que entramos numa fase da história que, em retrospecto, poderemos descrever como uma era de ruptura. Um sistema está morrendo e outro, baseado no diálogo, na inclusão de mais atores sociais, na autorreflexão e transparência, está sendo parido, dolorosamente. Nosso desafio, enquanto agentes de mudança, é fazer a conexão entre o mundo que está morrendo e o outro que quer nascer. E, nesse processo, reinventar a economia, a educação e a democracia.
De ego para eco
"Uma sociedade 4.0 é uma mudança de mentalidade. No passado, testemunhamos três estágios econômicos. O primeiro, centrado no Estado, é o estágio do planejamento e regulação. No segundo, viu-se o nascimento do setor privado, da competição como mecanismo de coordenação. Isso gerou muito crescimento e problemas, pobreza e desastres ambientais. Como resultado, veio o terceiro passo, de tentar amenizar as consequências negativas do livre mercado. Assim nasceu a previdência, os bancos centrais, as leis trabalhistas e os sindicatos. O que precisamos agora, e essa é a grande história da década, é de um quarto mecanismo de coordenação que vai complementar, não substituir, os outros três. Uma sociedade 4.0 é uma transição de uma abordagem egossistêmica, baseada no "eu", para uma conscientização compartilhada, que chamo de ecossistêmica. É uma situação em que vários atores sociais olham para um mesmo problema e produzem respostas espontâneas a partir de vários ângulos de visão. Vimos um pouco disso durante a crise do euro. Na Europa, os interesses nacionais estão colidindo com os do conjunto e não é fácil avançar além dos interesses de seu país. É um aprendizado doloroso, mas é hora de os líderes refletirem sobre si mesmos e sobre como evoluir, coletivamente. A próxima fase da evolução econômica dependerá do aprendizado de como trabalharmos e criarmos juntos. Fazer parcerias entre empresa, governo e sociedade civil. Inovar, não só em pequenos bolsões da sociedade, mas globalmente."