Desde que soube da notícia, fico imaginando epitáfios para a atleta olímpica Rebecca Cheptegei, queimada viva no Quênia, no último domingo (1º).
Venceu maratonas mas não o ataque do namorado.
Ganhou de vários atletas, perdeu para o feminicídio.
Deixa filhas e o medo de que também sejam atacadas.
Vizinhos relataram que o casal costumava discutir. Para resolver o problema, Dickson teve a brilhante ideia de esperar Rebecca voltar da igreja com as filhas, despejar um galão de gasolina sobre ela e atear fogo. Rebecca teve 80% do corpo queimado. Não resistiu e faleceu.
O presidente do Comitê Olímpico de Uganda lamentou o ato e o classificou como "sem sentido". Eu vejo sentido: o ódio às mulheres. O mesmo ódio que, esse ano, acendeu o isqueiro que queimou viva uma mulher numa estação de trem no Rio de Janeiro.
Não é só fogo. É tiro, é faca, é porrada.
Em 2021, a corredora queniana Agnes Tirop foi morta a facadas. No ano seguinte, a atleta queniana Damaris Mutua foi estrangulada. Em ambos os casos, os namorados foram identificados como principais suspeitos.
Em 2023, 1.463 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil. Em média, quatro mulheres por dia.
Nesse mesmo ano, 2023, eu estava em uma reunião com advogados, tratando de contratos de trabalho. Alguém comentou sobre uma mulher que tinha sido assassinada na minha cidade. Um dos advogados disse: tô sabendo, foi um daqueles crimes de amor.
Crimes de amor.
Um advogado, em pleno 2023.
Falhamos miseravelmente enquanto sociedade. Ensinamos nossos meninos a segurar o choro. A brincar com arminhas de plástico. A falar inglês e a fazer equações matemáticas. A ler contratos. Mas não ensinamos o mais básico: do que se trata o amor.
Não há amor nem paixão nas histórias de feminicídio. Na visão desses homens, não há sequer dois sujeitos: há um sujeito e um objeto. Um objeto que deve agradá-lo. Ou então ser tirado do caminho.
Essa semana foi julgado o caso de Gisele Pelicot. Uma senhora que foi dopada com remédios durante uma década pelo marido. Enquanto Gisele ficava desacordada, seu companheiro, pai de seus filhos, avô de seus netos, recebia em casa homens que recrutava na internet para estuprar a esposa. E filmava os estupros.
Noventa e dois estupros.
Gisele não foi morta, mas foi.
Sempre lembro da cena de um filme: uma pilha imensa de corpos, da altura de um prédio, representando os colonizados que foram sacrificados para a nossa "civilização" existir.
Também há sob nossos pés uma pilha imensa de cadáveres de mulheres. E um silêncio que às vezes assobia como um vento gelado. Um silêncio que só faz essa pilha crescer.
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