domingo, 8 de setembro de 2024

Há coisas que excitam além de café e cocaína, diz Almodóvar, FSP

 Walter Porto

Walter Porto

Editor de Livros e colunista do Painel das Letras

[RESUMO] Pedro Almodóvar fala em entrevista exclusiva sobre os textos de seu novo livro, 'O Último Sonho', mescla de ficção e diário que se tornou o mais próximo que escreveu de uma autobiografia. Maior cineasta vivo da Espanha, ele antecipa o longa em inglês que está prestes a lançar no Festival de Veneza, discute a transformação de livros em filmes e afirma que não anda encontrando muita coisa para ver no cinema.

"Como falei muito nas respostas, vamos mais três perguntas então", diz Pedro Almodóvar, animado em frente ao computador, quando sua assessora se aproxima para dizer que era hora de encerrar a entrevista.

O cineasta Pedro Almodóvar
O cineasta espanhol Pedro Almodóvar - Arden Wray/The New York Times

O maior cineasta vivo da Espanha, prestes a completar 75 anos, ainda opera na voltagem que o fez incendiar festas com sua presença e cinemas com sua arte desde os anos 1980. De fato, responde tudo com uma tagarelice jovial que parece querer abarcar todos os assuntos ao mesmo tempo.

Então é estranho que este seja o mesmo autor que introduz seu recém-lançado livro "O Último Sonho" contando que se tornou alguém "mais sombrio, mais austero e mais melancólico", uma alma mais insegura e medrosa que vê essa nova personalidade vazar para seus filmes.

É que aqui há vários num só, como fica evidente no próprio livro, um compêndio de 12 textos que escreveu dos anos 1960 —uma ficção sobre um homem que rejuvenesce à la Benjamin Button— até o ano passado —um relato ao estilo de diário, bem do tipo que diz abominar.

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"Acho entediante escrever sobre mim", anota um homem que passou boa parte de sua filmografia fazendo exatamente isso, só que de forma indireta. É o que fica claro quando se identifica na prosa pessoal de "O Último Sonho" alguns brotos que germinaram em filmes como "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999), "Má Educação" (2004) e "Dor e Glória" (2019).

O texto do título, que clama figurar entre as melhores cinco páginas que já escreveu na vida, é o mais orgulhosamente autobiográfico sobre um dos piores dias de sua vida —aquele em que perdeu sua mãe, meses depois de terminar o filme inspirado nela que acabaria vencendo o Oscar.

O autor de "Fale com Ela" (2002) lembra que foi com o negócio de escrita de cartas da mãe —bem como no filme "Central do Brasil" (1998), em suas palavras— que ele aprendeu a "diferença entre ficção e realidade". "Minha mãe preenchia os vazios das cartas", conta ele, e essas improvisações "mostravam como a realidade precisa da ficção para ser mais completa, mais agradável, mais habitável".

É sobre essa mescla inseparável que Almodóvar, que agora viaja ao Festival de Veneza para lançar o longa-metragem "The Room Next Door", discorre na entrevista a seguir, feita por videoconferência na última quarta-feira.

O senhor discute em ‘O Último Sonho’ a diferença entre o roteirista e o romancista, contando como sua carreira o levou a se dar conta de que seu trabalho com as palavras não o tornaria escritor e, sim, cineasta. Por que então publicar um livro? 

Foi ideia do editor dos meus roteiros. Eu sou muito descuidado, mas minha secretária [Lola García, a quem dedica a obra] sempre recolheu tudo o que era meu e guardava todos os escritos de qualquer tipo.

Eu não gosto muito de olhar para o passado, para as coisas que fiz antes. Tinha insegurança sobre o interesse nesse material, havia coisas escritas lá no final dos anos 1960. Lola começou a me dar alguns textos, ver minha reação, e eu me lembrei de onde estava e como vivia quando escrevi aquilo. Não me pareceram tão primitivos quanto eu achava.

Então fizemos uma seleção. Há alguns escritos logo depois que saí do colégio de padres, então noto minha hostilidade em relação à educação que recebi. O texto sobre Jesus e Barrabás ["A Redenção"] é quase minha vingança tergiversando com a história que os padres me contaram.

Quando morre [o ex-ditador espanhol Francisco] Franco, em 1975, não se sabia nada do que ia acontecer. Com o começo da democracia e o acesso às muitas liberdades que um jovem como eu podia ter, noto como meu estilo muda, meus relatos ganham velocidade.

Foi a origem de uma personagem, Patty Diphusa, que continuei a escrever sem pretensão numa revista chamada La Luna, muito moderna nos anos 1980. Um editor também reuniu tudo dela e fez um livro, que saiu no Brasil ["Patty Diphusa e Fogo nas Entranhas", publicado pela Tusquets em 2023].

Ela é um lado seu que se manifesta na página ou uma personagem separada do sr.? 

É uma síntese da minha imaginação e de pessoas que me rodeavam. Tem partes de meninos e meninas que estavam comigo naquele momento, num tom um pouco delirante —ela não dorme, está o tempo todo sustentada pela cocaína. São relatos muito cocainômanos.

Seu trabalho como criador de histórias com imagem e som é reconhecido como um dos melhores do mundo, mas agora o sr. expõe suas criações feitas apenas de palavras. Não se sente nu? 

Você sempre se expõe, mesmo numa simples entrevista, porque eu trato sempre de ser sincero. Fazer um livro, mesmo que não seja confessional, mas que conte etapas do que você viveu, tem uma exposição extra.

A princípio, eu sou uma pessoa extrovertida, mas que fala pouco a fundo de si mesma. Não sou hermético, mas sou reservado. Quando escrevi "Dor e Glória" e vi as afinidades do personagem de Antonio [Banderas] com minha própria vida, me perguntei se estava disposto a falar de tudo aquilo com a imprensa. Pensei cinco minutos e vi que não tinha remédio.

Eu me tornei um personagem público, mas trato de não falar das pessoas que estão comigo de forma direta. A pessoa famosa sou eu. Tenho cuidado e delicadeza para não roubar parte da biografia dos demais, que eles não gostariam de revelar.

Não quer virar um Emmanuel Carrère, que incomodou tanta gente próxima a ele com seus livros autobiográficos. 

Eu gostaria de escrever como ele [risos]. No seu último livro, "Ioga", tem uma personagem feminina que desaparece rapidamente. Estranhei, não é coisa de alguém que escreve bem como ele. Então li que a última mulher dele fez um contrato dizendo que ele não podia revelar a intimidade com ela.

É parte das circunstâncias da autoficção, da qual eu sou um grande admirador. O lugar onde melhor se faz isso é a França, e é fato que o prêmio Nobel para Annie Ernaux consagrou a autoficção como grande gênero literário. Mas meus relatos resultam mais modestos. Acho que interessam mais a quem vê meus filmes, porque ali aparece de forma meio misteriosa a gênese de vários deles.

Em um dos contos, "Mudanças de Gênero em Demasia", há a relação entre um diretor e um ator. O modo como eles se acercam de "Noite de Estreia" [filme de John Cassavetes com Gena Rowlands], "Um Bonde Chamado Desejo" [peça de Tennessee Williams] e "A Voz Humana" [de Jean Cocteau] tem a ver com a minha aproximação com esses textos.

Mas eu não sou o diretor no texto —me identifico com o ator, o artista que acha que tudo o que vê e lê pertence a ele. Mas ainda existe o direito autoral, e meu irmão [e produtor de seus filmes, Agustín Almodóvar] não deixa que eu me esqueça disso.

Em ‘O Último Sonho’, é interessante como o sr. parece decidir que, em vez de escrever uma autobiografia, é melhor mostrar aos leitores a prosa que escreveu ao longo dos anos, que são também sua vida. Contar a memória é sempre ficção? 

Você deve conhecer Benjamin Moser, que fez as biografias de Susan Sontag e de Clarice Lispector, duas mulheres muito complexas e grandes artistas. Não conheci Clarice, mas Sontag sim, ela vinha muito à Espanha e eu a via muito em Nova York. Uma vez estive com ela na casa de Caetano Veloso, de quem era amiga.

Eu leio a biografia de Moser como um romance. Ele não esteve nos momentos que narra, mas através da ficção eles chegam de modo mais claro que se fossem uma biografia normal. A ficção me dá mais informação sobre a história de uma época que os livros de história.

Desde o momento em que se começa a escrever, se toma distância do material. Em "Dor e Glória", eu tinha acabado de operar as costas, metade estava imobilizada com ferros, e meu momento de maior prazer era quando afundava na água e desaparecia toda a tensão muscular. Comecei então com essa imagem.

Imediatamente, isso me levou ao passado, à corrente de água do rio do meu povoado, onde eu acompanhava minha mãe a lavar roupa, o que me levou ao sabão que usávamos, e fui puxando o fio da minha vida. Passei a contar a dor física animada por uma história divertida.

Há uma distância própria da escrita, ela pede que você invente personagens, situações. "Dor e Glória" parte da minha vida, mas pelo menos metade do filme não tem nada a ver comigo, é pura ficção.

No último texto, ‘Um Romance Ruim’, o sr. diz que um bom romance quase nunca vira um bom filme. O sr. chegou a fazer adaptações de Cocteau e Alice Munro [‘A Voz Humana’ e ‘Julieta’, na ordem] e desistiu há pouco de adaptar Lucia Berlin...

Não, não. Esse roteiro existe. O mais difícil eu fiz. Mas continue.

Está mais clara para o sr. a preferência por roteiros originais? 

Como digo, a inspiração vem sempre de fora, e esse exterior pode ser um pesadelo, um filme ou um livro. Por exemplo, quando li Berlin, encontrei minha alma gêmea. Não sou mulher nem alcoólatra nem tenho o talento dela, mas era uma personagem que sentia absolutamente próxima.

Quando li "Manual da Faxineira", me pus logo a fazer a adaptação. Ela ficcionou muito, mas a origem do livro é ela mesma. Então o mais difícil foi escolher cinco contos e criar uma unidade entre eles. Consegui, Cate Blanchett topou fazer, mas ela tinha um ano de trabalho adiante, por exemplo com a série de Alfonso Cuarón ["Difamação", prestes a estrear na AppleTV+].

Eu sou incapaz de esperar, estou sempre fazendo algo. Então continuei e fui entender que o filme teria que ser feito em estúdio, onde costumo controlar absolutamente tudo o que aparece diante da câmera. Só que aqui apareceria tudo de uma outra cultura, a americana, e de épocas antigas.

Isso me cria uma enorme insegurança, porque em tudo relacionado a decoração, eu sou um pesadelo para qualquer diretor de arte. 80% dos móveis e objetos que aparecem nos filmes são sempre meus. Fiquei com medo da amplitude dessa enorme produção.

Então fui terminar "A Voz Humana" (2020), fiz "Estranha Forma de Vida" (2023) e, enquanto esperava por Cate, li um livro de Sigrid Nunez, "O que Você Está Enfrentando". Ela fala de forma errática, vagabundeando por assuntos, vai contando de tudo, é inadaptável. Mas tinha uma situação que me interessava muito, que é quando ela visita uma amiga doente.

Percebi que aquilo me movia, desenvolvi personagens que não estavam no livro e isso virou "The Room Next Door" [com Tilda Swinton e Julianne Moore], o filme que acabei agora e estreia no próximo dia 2 no Festival de Veneza.

Esse filme vem depois de outro trabalho com Swinton e um curta com Ethan Hawke e Pedro Pascal, todos em inglês. Por que quis sair do mundo que fala espanhol e ficar ali fora? 

Sabe, fiz esses dois curtas como treino para ver como lidava com atores estrangeiros. Descobri que podia. Foram experiências muito positivas, um pouco como começar a fazer cinema de novo. Recuperava uma liberdade que um longa-metragem não permite. Foi quase um presente para mim mesmo.

Em "The Room Next Door", os dois personagens femininos são de Nova York, Tilda é escocesa, mas trabalhou em seu sotaque americano. Para você e eu pode não ter muita diferença, mas contratamos um coach para isso [risos]. Eu já tinha me dado muito bem com ela, ficamos amigos. Julianne se convenceu muito fácil.

Rodar um filme é sempre uma aventura, seja em português, em inglês, tanto faz. A gravação é um safári, você não sabe o que vai encontrar, mas sabe que precisa ir adiante. Não tive mais problemas do que com um filme em espanhol. Se Lucia Berlin era uma grande produção, essa era muito mais manejável.

E ainda é um filme muito meu. É um tema severo e profundo que tratei de deixar mais luminoso e vital, para que perdesse a parte lúgubre da história. Consegui continuar improvisando e mexendo nos
diálogos mesmo em inglês. E as atrizes estão absolutamente extraordinárias. São dois dos melhores trabalhos de todos os meus 23 filmes.

O sr. diz no livro que, na sua juventude, tinha certeza de que nunca ficaria entediado, mas hoje se aborrece e enxerga isso como uma espécie de derrota. Isso tem mais a ver com o sr. ou com o mundo? 

Tem a ver comigo, que fui me isolando, e com a passagem do tempo. A Madri que vivi na minha juventude não é a de agora, mas, se ela ainda existisse, eu não poderia viver da mesma maneira. É uma mescla de tudo.

Grande parte do meu trabalho acontece na solidão. E eu me aborreço muito nos dias santos, como o Natal. O que sempre faço é escrever sobre o vazio, olho a janela e escrevo o que vejo. Às vezes dou com um tema novo ao longo da noite, às vezes não. Quando não encontro nada, saio e compro um monte de livros, que demorarei meses para ler. Antes fazia isso com DVDs, hoje com livros. É como um ansiolítico.

O sr. escreve que está mais melancólico, que virou uma pessoa mais séria, mas me parece muito enérgico, cheio de disposição. É por causa do novo filme em Veneza? 

O dia é longo e atravesso estados de ânimo distintos. Não me transformei num misantropo, continuo saindo para jantar, ainda que menos que antes. Mas há prazeres que vão se reduzindo.

Se fossem os anos 1990, eu diria "vamos continuar a conversa com um café". Hoje não tomo estimulantes, escolho a saúde em vez da excitação. Há coisas que excitam além do café, da cocaína e dos chocolates, mas tenho optado pelo trabalho. De todas as coisas que fazia, a que mais me importava era o trabalho.

Trato de ir toda semana ao cinema, ainda vou, mas agora é muito difícil encontrar um bom filme.

O que aconteceu com o cinema?

Não me interessam os filmes de super-heróis nem as sequências nem as "prequels". São uma boa porcentagem do que se faz em Hollywood. Eu me interesso por filmes de autor, adoro o cinema americano dos anos 1930 até os 1970. Incluo até os 1980. Mas não é o que me faz vibrar.

Em Veneza vou ver "Queer", baseado em um romance de William S. Burroughs que li quando tinha 27 anos e fiquei em choque. Naturalmente, vou assistir. O diretor é [o italiano] Luca Guadagnino, mas é um filme em inglês. Estou ardendo de desejo de ver o filme de Coppola ["Megalopolis"]. E morrendo de vontade de ver "Coringa: Delírio a Dois".

Então não quero dizer que não haja nada. Tenho estímulos para seguir vivendo. Mas tem que esperar. Antes, a cada semana tinha algo interessante para ver. E agora pode passar um mês sem nada.

O ÚLTIMO SONHO

  • Preço R$ 74,90 (192 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Pedro Almodóvar
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Miguel Del Castillo

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