O homem, na história do universo, vive um singelo ciclo e quase sempre cumpre todas as etapas programadas pela biologia mas, em razão da evolução natural e da procura por um viver melhor, estabelece condições para que possa realizar todos os seus objetivos. A corporeidade – assim entendida como um princípio individualizante – tem por função imprimir ao homem sua realidade singular, revelando-o como pessoa articulada com as demais. Faz dele o detentor de um enorme latifúndio chamado corpo humano, que funciona como instrumento não só deambulatório, mas, também, com inúmeras funções para realizar seus objetivos e, ao mesmo tempo, abriga, em seu interior, as vidas psíquica, volitiva e inteligente.
Tanto é que, no regramento constitucional brasileiro, vêm explicitados os princípios da proteção à vida, dentre eles, com relevo, o da dignidade da pessoa humana, para que haja a efetiva proteção desde a vida intrauterina, infantil, adolescência, adulta e idosa, compreendendo, portanto, o orior (nascer) e o morior, (morrer) dos romanos.
Juridicamente é relevante estabelecer o momento da morte. Este, no entanto, é da competência exclusiva da medicina que, dentre os critérios existentes, irá apontar a causa e a forma pelo qual se deu o passamento. Um dos critérios que guarda relevante interesse para a área jurídica é o da constatação da morte encefálica. Pode até se ter a impressão de que se trata de uma faculdade discricionária outorgada ao médico para que possa declará-la de acordo com sua conveniência. Ocorre, no entanto, que há um rigoroso protocolo a ser seguido para atingir tal objetivo.
A morte encefálica, resumidamente, é aquela que ocorre quando ausentes as funções neurológicas, com total irreversibilidade das funções do cérebro e do tronco cerebral. A sua constatação exige a realização de exames clínicos por dois médicos e a exibição de uma prova documental gráfica, em pelo menos duas oportunidades, com acentuado intervalo de horas, com a finalidade de constatar a ausência dos reflexos cerebrais. Recomenda-se, também, a realização de outros exames, como, por exemplo, o eletroencefalograma, a cintilografia de perfusão cerebral, arteriografia, doppler, etc.
O tronco cerebral, que faz parte do encéfalo, responsável por todas as estruturas nervosas do corpo humano e de suas funções vitais, como o batimento cardíaco, respiração, sentimento, pressão arterial, pode ser considerado o administrador do grande latifúndio chamado corpo humano. Tanto é que, feito o diagnóstico de morte encefálica, apesar do paciente continuar com os órgãos viáveis, é considerado legalmente morto, oportunidade em que é possível a retirada de órgãos para transplante, se autorizado pelos familiares.
A definição na legislação brasileira vem consubstanciada no artigo 3º da Lei nº 9.434/97, in verbis: “A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”.
Tal definição orientou o Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), quando decidiu, por maioria de votos, pela autorização de aborto de feto anencefálico, aquele desprovido de encéfalo e calota craniana. É interessante destacar, nesta oportunidade, que foi afastada a pretensão de doação de órgãos de fetos anencéfalos, isto porque seria um contrassenso obrigar a mulher a manter a gravidez para viabilizar a doação de órgãos.
Tamanha a importância de definição do momento da morte que, se após a decretação médica da falência encefálica, alguém praticar algum ato contra o paciente com a intenção de matá-lo, esbarrará no crime impossível e responderá, se for o caso, pelo crime de vilipêndio a cadáver.
Assim, a tão próxima e desconhecida morte ocorre pelos seus inenarráveis desígnios ou até mesmo, em algumas circunstâncias especiais, é reconhecida pela lei do homem. Em qualquer caso, é de se considerar que ela faz parte da própria vida. É o seu protocolo final. Cabe aqui a pureza e a intensidade da prece que o inconfundível poeta popular Patativa do Assaré dirigiu à morte: “Morte, você é valente/ o seu poder é profundo/ quando cheguei neste mundo/ você já matava gente. / Eu guardei na minha mente/ este seu grande rigor/ porém lhe peço um favor/ para ir ao campo santo/ não me faça sofrer tanto/ morte, me mate sem dor”.
Mário Quintana, por sua vez, conhecido como o poeta das coisas simples e encantado pela vida, com a intenção de afugentar a morte e eliminar o pensamento a respeito do cadáver, mandou escrever na lápide de seu túmulo: “Eu não estou aqui”.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado.
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