quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Imperativo, como não usar, José Henrique Mariante, FSP

 

Ainda que redes sociais e mecanismos de busca condicionem títulos e textos noticiosos de maneira cada vez mais contundente, certas regras insistem em perdurar. A maioria dos enunciados da Folha, por exemplo, continua no tempo presente, o tempo do jornalismo, apesar de esforços em contrário. A lista de coisas a se evitar também continua importante, como o gerundismo e o deselegante imperativo.

"Privatize-se", escreveu a Folha em editorial na noite de terça-feira (3), após o dia de transtornos provocados pela greve de funcionários do transporte público em São Paulo. Mais do que forma verbal, como descreveu Thiago Amparo, uma ordem a um estado em que 43% recusam a proposta de privatizar empresas e serviços.

A greve é política, argumentou o jornal, como se isso bastasse para justificar a venda de qualquer coisa. O colunista notou que a greve é sim política e que isso não é um problema. Ruim é despolitizar a vida. E, pelo contrário, o que mais precisamos no inferno paulistano é buscar consensos, discutir os rumos da cidade.

A greve é ilegal, martelou o editorial e também o jornal em seus títulos principais sobre o evento. A manchete do impresso foi "Greve em SP para trens e desobedece juiz", em tom inconformado, quase editorializado. Qual greve ocorre sem embate judicial, sem flertar com a confusão, perguntou o ombudsman em crítica interna. Era muito mais fácil relatá-la como o que foi, uma manifestação pública contra as planejadas privatizações do governo Tarcísio de Freitas. Ou, melhor ainda, que o dia de caos antecipava a disputa eleitoral de 2024, como concluiu em análise Igor Gielow.

Folha, no entanto, se mostra intolerante ao tratar do assunto, que virou uma espécie de prioridade do jornal desde agosto do ano passado, quando outro editorial, com título mais polido ("Privatizar é bom"), sublinhava aos então candidatos à Presidência que o assunto era um tema importante. As ameaças antidemocráticas já faziam o país arder, mas havia um recado a ser dado. Talvez a leitora e o leitor esperassem demandas diferentes, mas aí já é outra história.

Na ilustração vemos um grande martelo preto de leilão atingindo a palavra "leitor".
Folhapress

Daquele editorial ao da última semana, 15 textos sobre privatização ou que citavam a temática foram publicados pela seção de Opinião, um por mês desde agosto último. Não é uma frequência acima do normal, ainda mais para um assunto em pauta, mas o problema não está nisso. O que distingue a defesa do sistema de outras tantas bandeiras levantadas e conduzidas pela Folha é a veemência, escancarada na escolha do último enunciado, na ordem proferida. O jornal escreveria "Legalize já"?

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Não se discute aqui as razões para tamanho esforço, mas a forma. Como no caso da cobertura da greve, seria bem mais simples ampliar o debate e conceder espaço justo para o contraditório. O próprio jornal constatou em suíte na última semana que o transporte sobre trilhos privatizado é "raro em metrópoles"; a linha concessionada da CPTM é um fracasso a olhos vistos; por que não promover um seminário sobre reestatizações de saneamento ocorridas em outros países. Sobram caminhos.

Interditar o debate é o que os dois lados da disputa política almejam. A Folha pode e deveria fazer diferente.

PRIORIDADES

Os jornais têm suas bandeiras, mas é forçoso constatar que ambiente raramente é uma delas. Em uma semana de disputas institucionais em Brasília e violência no Rio, não faltou notícia. É preciso registrar, porém, que o único diário entre os quatro grandes do país a se impor uma manchete para a calamidade da seca na Amazônia foi o Valor Econômico.

Faz lembrar "Não olhe para cima", outro título imperativo.

BARRA PESADA

chope entre amigos que virou tragédia presumidamente por um deles ser parecido com um alvo miliciano foi filmado por algumas câmeras no Rio. Na manhã de quinta-feira (5), quase todos os sites mostravam as imagens.

Na Folha, a coisa foi publicada como chegou, limpa, com toda ação captada. Em O Globo, alguns borrões nos corpos caídos. Em O Estado de S.Paulo, todo o lado das vítimas borrado, restando intacta apenas a movimentação dos atiradores entre o carro e o quiosque.

Há evidente interesse jornalístico em mostrar as imagens, mas a pergunta é até que ponto: se é de fato necessário revelar toda a carnificina ou se é suficiente transmitir uma breve noção de sua materialidade; sé é razoável, em nome da informação, revitimizar quem é próximo aos chacinados.

Folha decide a exposição de imagens assim caso a caso. Não mostrou o estupro na sala de parto e recuou na transmissão do ataque na escola. Deveria ter se contido também neste último episódio. Imagens precisam denunciar alguma coisa para serem publicadas. Apenas confirmar nossa estupidez não é requisito.


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