sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Mauro Calliari A vida em nossas cidades está ameaçada. O narcisismo é a doença, e a indiferença, o sintoma, FSP

Em tempos de aspereza e histeria, um dos temas que andou mais por baixo das conversas dos últimos tempos foi, contraditoriamente, a cidade.

profundidade da cisão foi tão grande que deixamos de olhar para o objeto mais próximo e mais cotidiano: as ruas, os espaços públicos, os prédios e as pessoas das cidades, como se o país e Brasília boiassem num grande magma abstrato. Não boiam. 86% dos brasileiros moram em cidades, pequenas, médias, grandes ou gigantescas, mas ainda assim cidades, onde somos obrigados a conviver com pessoas diferentes.

Não é fácil. A convivência com diferenças exige certo preparo, uma predisposição para a urbanidade. Desde sempre, a vida na cidade foi associada a determinadas qualidades que permitiram essa convivência: a civilidade, a educação e a polidez. No Brasil, parte disso se perdeu nos últimos anos. Noto claramente essa perda em São Paulo.

Olhamos com descrédito o sinal verde para pedestres pois sabemos que é preciso esperar que os motociclistas apressados terminem de passar - Karime Xavier/Folhapress

Quando acabou o distanciamento social e a obrigatoriedade do uso da máscara todos achamos que a alegria iria nos levar a outro patamar de vida coletiva. Entretanto, o medo do outro parece pairar como ameaça ao prazer de sairmos às ruas, para uma festa ou para ir comprar pão na esquina, para levar um filho à escola ou para acompanhar o time no estádio. Temos medo do desconhecido, de alguém levar o celular, de sentar numa mesa na calçada ao lado de uma sinfonia de buzinas de motoristas irados e dos escapamentos abertos. Olhamos com descrédito para o homenzinho verde no sinal de pedestres pois sabemos que antes de começar a travessia é preciso esperar que os motociclistas apressados terminem de passar.

O risco de uma cidade que gera medo e irritação é a perda da matéria mais própria da vida urbana: as trocas, o desenvolvimento de novas ideias, o emprego, as compras, a arte, os encontros. Tudo isso parece estar sob ameaça pelo medo da violência, pela truculência ou pela mera indiferença.

Ora, a indiferença é o sintoma de uma doença: o narcisismo.

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O narcisismo das pequenas diferenças é usado por Freud para explicar o mecanismo segundo o qual membros de uma comunidade buscam aumentar sua coesão, acentuando diferenças com os outros. É uma espécie de alívio para a obrigação de dependerem da vida em coletividade. Os exemplos desse comportamento são vários: a agressividade contra estrangeiros, o estabelecimento de inimigos oficiais da pátria, a repulsa às minorias. Apesar de escrita há mais de cem anos, a explicação parece se encaixar no Brasil de hoje e principalmente na perda de urbanidade dos últimos anos.

Em vez de me submeter à convivência com pessoas que podem me trazer surpresas, me agarro ao grupo que traz conforto. Os torcedores do meu time, os membros da minha igreja, os moradores do meu condomínio, os que gostam da mesma música, os que usam as mesmas bandeiras. Não há nenhum problema inerente a essas associações naturais e espontâneas. O problema é que pessoas que querem rapidamente encontrar e conviver com aqueles com quem podem compartilhar seus sentimentos não passam pelas etapas de construir um repertório de assuntos comuns.

O efeito de me fechar num grupo é, de um lado, entregar minha identidade ao grupo, e do outro, olhar para os de fora com as lentes narcisísticas do EU. Você não vota em quem eu voto? Você tenta atravessar a rua enquanto eu quero acelerar meu carro? Você vai num museu enquanto eu estou trabalhando? Problema seu, não quero nada a ver com você. Vou ignorá-lo.

A indiferença com o outro se transfere para a cidade. Para que cuidar da calçada em frente à minha casa, para que se preocupar com a praça do bairro, para que fazer silêncio se eu posso buzinar bem alto ou fazer tremer as janelas dos prédios com o som bem alto se o outro não existe?

Se a urbanidade está ameaçada, a primeira ação do tratamento não precisaria ser uma mudança total, mas uma série de pequenos gestos individuais de civilidade básica. Diminuir um pouco nossa necessidade de ser ouvido a qualquer momento. Abaixar o volume da voz, buzinas, motores e mensagens, celebrar os gestos livres do cotidiano, reconhecer a existência de outras pessoas na fila do banco, tirar o chapéu invisível para o vizinho no elevador, cumprimentar com cuidado os outros frequentadores da feira perto da sua casa enquanto você toma seu caldo de cana, sair da frente da porta do metrô quando não vai descer, andar com mais calma, diminuir a velocidade do carro.

A segunda camada de ações tem a ver com a reconstrução e a manutenção obsessiva dos espaços públicos pelo poder público. É na rua, nas pracinhas da Aclimação e Freguesia, na praça Roosevelt, no Cantinho do Céu, no Ibirapuera e no parque do Carmo que as pessoas se encontram cotidianamente. Melhorar a segurança e a zeladoria. Fiscalizar as calçadas medíocres que levam as crianças à escola, os pacientes ao Hospital das Clínicas, os funcionários aos escritórios da Berrini, os comerciantes e clientes ao comércio do Pari.

A última parte desse plano difícil, mas necessário, é tornar visível aquilo que está à nossa volta, a cidade. No plano federal, recriar o Ministério das Cidades, incentivar os consórcios de municípios menores, exercitar o Estatuto das Cidades. No plano estadual, administrar de fato as regiões metropolitanas. Lembrar que Guarulhos, São Paulo e Osasco compartilham os mesmos fluxos: rios, ruas, redes férreas, esgotos, eletricidade, pessoas.

Para terminar, seria bom que retomássemos um projeto comum de convivência que pudesse sanar a fissura comportamental despertada pelo ódio das eleições. Não sei se a Copa do Mundo, o Réveillon ou o Carnaval serão suficientes para lembrar que temos algo em comum. Melhor mesmo seria contar com projeto quase banal, mas essencial, o de seguir a vida cotidiana possível em conjunto. Se uma cidade como São Paulo não oferecer a seus 12 milhões de habitantes a possibilidade de compartilhamento de espaços públicos seguros e interessantes, seja um ponto de ônibus na avenida Sapopemba, seja o vão do Masp na avenida Paulista, como esperar que venhamos a ter um país comum? O risco da indiferença nas cidades é a morte de um país.

 

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