segunda-feira, 4 de julho de 2022

Redes sociais, games, pornografia: psiquiatra americana sugere jejum de ‘gatilhos de prazer’, OESP

 A descoberta da dopamina como neurotransmissor independente no sistema nervoso central ocorreu na Suécia, em 1957, pelo farmacologista Arvid Carlsson. Muito além da descoberta da dopamina, nem todo mundo se atenta a uma das constatações neurocientíficas mais extraordinárias do século passado: a de que o cérebro processa prazer e sofrimento no mesmo lugar.  É assim que a psiquiatra americana Anna Lembke, autora do livro Nação Dopamina, lançado em abril, inicia a obra que mostra como o prazer e o sofrimento funcionam como dois lados de uma balança e como entender a relação entre eles se tornou essencial para viver bem. 

Anna Lembke
A psiquiatra americana Anna Lembke, autora do livro "Nação Dopamina". Foto: Steve Fische/Divulgação

Em entrevista ao Estadão, Anna explica que a busca constante por realização plena tende a gerar um cenário de eterna frustração e sofrimento. Isso porque o cérebro humano, ávido por recompensas, acaba entrando em um círculo vicioso de compulsão. “A covid acelerou a tendência já existente de consumo compulsivo, especialmente de medicamentos e alimentos digitais”, afirma ela, que define o smartphone como a “agulha hipodérmica dos tempos modernos, fornecendo incessantemente dopamina digital para uma geração plugada”.

A psiquiatra analisa a neurociência da recompensa em um mundo de completa abundância e excesso –  de redes socias, mensagens de textos, games, drogas, comida, notícias, compras, jogos de azar, mensagens de texto, sexo e pornografia –  e chama toda essa variedade de “estímulos altamente compensatórios”. Contra a compulsão, Anna sugere um “jejum de dopamina”. 

“Se descobrirmos que não podemos nos abster por 30 dias da nossa droga de escolha, ou a usamos compulsivamente imediatamente ao final dos 30 dias, pode ser necessário procurar o conselho de um profissional médico”, diz Anna, professora de Psiquiatria e Medicina de Adicção na Universidade Stanford.

Celular
Anna Lembke define o smartphone como a “agulha hipodérmica dos tempos modernos, fornecendo incessantemente dopamina digital para uma geração plugada”. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Por meio de casos de seus pacientes, a psiquiatra colocou no papel algumas experiências reais com o objetivo de ajudar o leitor a superar o consumo desenfreado e ser capaz de encontrar um melhor equilíbrio entre prazer e sofrimento para levar uma vida mais saudável. Leia os principais trechos da entrevista ao Estadão

O que a motivou a escrever sobre esse tema? 

Comecei a escrever o livro vários anos antes da pandemia e terminei no verão de 2020. Inicialmente, pensei que o momento era terrível. Presumi que a covid eliminaria o interesse em qualquer tópico não relacionado à pandemia. Não poderia estar mais errada. A covid acelerou a tendência já existente de consumo compulsivo, especialmente de medicamentos e alimentos digitais. Então, como se vê, as mensagens no livro eram mais relevantes do que nunca. Escrevi o livro porque queria contar o que aprendi com os pacientes e com a neurociência sobre como lidar com o problema do consumo excessivo compulsivo. Vou mais longe e afirmo que grande parte da miséria moderna resulta da superabundância. Nossa fiação primitiva, que evoluiu ao longo de milhões de anos de evolução para nos aproximar do prazer e evitar a dor, é altamente adaptável em um mundo de escassez e perigo presente, mas incompatível com nosso ecossistema moderno de fácil acesso a prazeres potentes.

Por que estamos tão viciados nesses “gatilhos” de prazer? A pandemia agravou essa situação?

Recebemos uma dose de dopamina não apenas da droga em si, mas também de lembretes da droga: passar por um bar onde bebemos, receber uma notificação push sobre uma nova série da Netflix em nosso gênero favorito, ouvir um alerta nos notificando que alguém respondeu ao nosso texto. Até mesmo pensar em nossa droga de escolha – recordação eufórica – pode liberar dopamina.

O quanto a digitalização e o consumo contribuem para esse processo?

As drogas digitais estão em toda parte agora e nos seguem onde quer que vamos. Mesmo se tentamos fugir, não conseguimos. Somos obrigados pela vida moderna a ter e interagir com dispositivos e a internet. A abstinência dos dispositivos não é uma opção.

O quanto esse cenário é pior do que era há poucas décadas?

Tem piorado progressivamente nos últimos 30 anos. Grupos demográficos que antes eram menos vulneráveis ao vício estão mostrando sinais de vício. As taxas de dependência de álcool aumentaram 50% em idosos e 80% em mulheres nos últimos 30 anos, por exemplo. As pessoas estão ficando viciadas em novas drogas que não existiam antes (mídias sociais, videogames, criptomoedas). E 70% das mortes globais são por doenças causadas por fatores de risco modificáveis, como tabagismo, má alimentação e falta de atividade física. Pela primeira vez na história, há mais obesos no planeta do que pessoas abaixo do peso.

Quais são os riscos dessa caça de dopamina, busca e dependência por compulsões e válvulas de escape?

Um grande risco é o vício e todos os males sociais e de saúde que acompanham o vício, mas outros riscos mais sutis incluem aumento da depressão, ansiedade, irritabilidade, insônia e preocupação mental com nossa droga.

Como avalia o cenário da medicalização no Brasil e no mundo? 

Agora medicalizamos os problemas sociais, o que, por sua vez, significa que prescrevemos um medicamento para todo tipo de sofrimento, mesmo que esse sofrimento não seja causado por uma doença física, mas sim por uma doença social. Eu não acho que isso vai nos levar onde queremos ir. Na verdade, isso pode nos fazer retroceder, pois usamos drogas para encobrir e ignorar problemas sociais. É o “ópio das massas” de Marx em grande escala.

Podemos dizer que a humanidade está mais infeliz e deprimida? Se sim, quais os principais motivos que levam a esses sintomas?

As tendências epidemiológicas mostram que as taxas de depressão e suicídio estão aumentando em todo o mundo, especialmente nas nações ricas. Quanto mais rica a nação, mais infeliz é o povo. Nós evoluímos para um mundo de escassez. Nós somos os lutadores finais. Agora que temos tudo o que sempre precisávamos e mais, e o tempo de lazer e a renda disponível para persegui-lo, estamos nos excitando até a morte.

Quais sinais de que essa “dopamina” está fazendo mal pra gente?

Uso compulsivo e fora de controle. Mentir sobre o uso. Comportar-se de maneiras que não são consistentes com nossos objetivos e valores. Sentindo-se mais deprimido e ansioso. Preocupação mental com nossa droga.

Qual é o momento do alerta?

No mundo sobrecarregado de dopamina em que vivemos agora, estamos todos vulneráveis ao problema do vício o tempo todo.

O que devemos fazer em seguida? 

Como falo em meu livro, um bom lugar para começar é um jejum de dopamina de 30 dias com nossa droga de escolha para redefinir os caminhos de recompensa, obter insights, sair do vórtice do consumo excessivo compulsivo e tomar melhores decisões no futuro sobre como queremos incorporar a droga (incluindo drogas digitais) em nossas vidas, se for o caso. Se descobrirmos que não podemos nos abster por 30 dias, ou a usamos compulsivamente imediatamente ao final dos 30 dias, pode ser necessário procurar o conselho de um profissional médico.

Preste atenção

Fique atento se a sensação de prazer diante do estímulo tem sido mais fraca e mais curta e se, ao se distanciar dele, você sente sintomas como ansiedade, irritabilidade e insônia

Sinais de vício

- Uso compulsivo e fora de controle

- Mentir sobre o uso

- Comportamentos que destoam dos valores e objetivos da pessoa

- Quadros de insônia, ansiedade e depressão

- Preocupação excessiva com o objeto da compulsão

O que fazer

- Tentar uma período de abstenção

- Conversar com pessoas próximas

- Buscar por grupos de apoio

- Caso não tenha obtido sucesso nas tentativas de sair do vórtice do consumo excessivo compulsivo, pode ser necessário procurar o conselho de um profissional médico.

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