segunda-feira, 4 de julho de 2022

Indiferença de presidente de Portugal a provocação mostra que Bolsonaro é descartável, Mathias Alencastro ,FSP

 Há décadas que Marcelo Rebelo de Sousa, de carreira pouco convencional na política portuguesa, é conhecido como um ás da comunicação. Além de líder da centro-direita na década de 1990, ele atuou como prestigiado editor do jornal Expresso durante a transição para a democracia e, nos anos 2000, como voz da nação, ao comentar as notícias todos os domingos no horário nobre da televisão.

Num país em que o povo é conhecido pelo apreço à formalidade, Marcelo, como costuma ser chamado, destoa dirigindo táxis para conversar com o cidadão comum, segurando e beijando crianças, grávidas e idosos e até saindo do Palácio Presidencial para tirar dinheiro no caixa automático em plena crise política.

O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, durante entrevista coletiva após se encontrar com Lula, em São Paulo
O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, durante entrevista coletiva após se encontrar com Lula, em São Paulo - Nelson Almeida/AFP

Esse populismo do afeto, além de lhe garantir boa popularidade, tem enorme poder simbólico. Ao humanizar a função presidencial, mumificada pelo seu antecessor, Aníbal Cavaco Silva, ele deu uma vitalidade inesperada às instituições políticas nacionais, ameaçadas pela crise de legitimidade das democracias e pela ascensão da extrema direita. A reputação de Portugal como uma ilha de paz numa Europa conflagrada pode ser imputada à sua forma de exercer a função presidencial.

Marcelo também tem sido um dos raros chefes de Estado a não abandonar o Brasil nos últimos anos, multiplicando as visitas oficiais e insistindo em dialogar com todas as forças políticas, com pouco destaque, porém, para as lideranças negras e indígenas, que merecem mais atenção pelo seu lugar central na história que une os dois países.

A paixão do líder português pelo Brasil parece ter incomodado Jair Bolsonaro, que cancelou um encontro oficial agendado para esta segunda-feira. Uma decisão tipicamente irracional do presidente, tendo em conta a proximidade entre os dois países, que traz a memória de outro momento vergonhoso, quando ele trocou uma reunião com o chanceler francês Jean-Yves Le Drian por uma ida ao cabeleireiro, enterrando o acordo entre União Europeia e Mercosul em seu primeiro ano de mandato.

Marcelo reagiu ao vandalismo diplomático com uma soberba indiferença. Aproveitou o final de semana para dar um mergulho numa praia carioca, exaltar a amizade entre os povos e se encontrar com Lula. Seu gesto deixa evidente o desprezo da comunidade internacional por Bolsonaro. Antes um presidente imprevisível que devia ser tratado com cuidado, hoje ele é um autocrata perfeitamente dispensável.

Ao fugir da intriga, Marcelo também impede que a celebração dos 200 anos da independência seja sequestrada pela breguice bolsonarista. Por trás de iniciativas que tresandam a olavismo, como o transporte do coração de dom Pedro 1º, está uma relação em plena efusão criativa e festiva que será celebrada na Bienal do Livro, com a presença de alguns de nomes como Rui Tavares e Kalaf Epalanga.

Para eles e muitos outros, o que realmente fascina são os próximos 200 anos. O mergulho de Marcelo, no final das contas, reflete o sentimento de uma parte cada vez maior dos brasileiros de lavar a alma depois de quatro anos de mediocridade e miséria humana.


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