Há décadas que Marcelo Rebelo de Sousa, de carreira pouco convencional na política portuguesa, é conhecido como um ás da comunicação. Além de líder da centro-direita na década de 1990, ele atuou como prestigiado editor do jornal Expresso durante a transição para a democracia e, nos anos 2000, como voz da nação, ao comentar as notícias todos os domingos no horário nobre da televisão.
Num país em que o povo é conhecido pelo apreço à formalidade, Marcelo, como costuma ser chamado, destoa dirigindo táxis para conversar com o cidadão comum, segurando e beijando crianças, grávidas e idosos e até saindo do Palácio Presidencial para tirar dinheiro no caixa automático em plena crise política.
Esse populismo do afeto, além de lhe garantir boa popularidade, tem enorme poder simbólico. Ao humanizar a função presidencial, mumificada pelo seu antecessor, Aníbal Cavaco Silva, ele deu uma vitalidade inesperada às instituições políticas nacionais, ameaçadas pela crise de legitimidade das democracias e pela ascensão da extrema direita. A reputação de Portugal como uma ilha de paz numa Europa conflagrada pode ser imputada à sua forma de exercer a função presidencial.
Marcelo também tem sido um dos raros chefes de Estado a não abandonar o Brasil nos últimos anos, multiplicando as visitas oficiais e insistindo em dialogar com todas as forças políticas, com pouco destaque, porém, para as lideranças negras e indígenas, que merecem mais atenção pelo seu lugar central na história que une os dois países.
A paixão do líder português pelo Brasil parece ter incomodado Jair Bolsonaro, que cancelou um encontro oficial agendado para esta segunda-feira. Uma decisão tipicamente irracional do presidente, tendo em conta a proximidade entre os dois países, que traz a memória de outro momento vergonhoso, quando ele trocou uma reunião com o chanceler francês Jean-Yves Le Drian por uma ida ao cabeleireiro, enterrando o acordo entre União Europeia e Mercosul em seu primeiro ano de mandato.
Marcelo reagiu ao vandalismo diplomático com uma soberba indiferença. Aproveitou o final de semana para dar um mergulho numa praia carioca, exaltar a amizade entre os povos e se encontrar com Lula. Seu gesto deixa evidente o desprezo da comunidade internacional por Bolsonaro. Antes um presidente imprevisível que devia ser tratado com cuidado, hoje ele é um autocrata perfeitamente dispensável.
Ao fugir da intriga, Marcelo também impede que a celebração dos 200 anos da independência seja sequestrada pela breguice bolsonarista. Por trás de iniciativas que tresandam a olavismo, como o transporte do coração de dom Pedro 1º, está uma relação em plena efusão criativa e festiva que será celebrada na Bienal do Livro, com a presença de alguns de nomes como Rui Tavares e Kalaf Epalanga.
Para eles e muitos outros, o que realmente fascina são os próximos 200 anos. O mergulho de Marcelo, no final das contas, reflete o sentimento de uma parte cada vez maior dos brasileiros de lavar a alma depois de quatro anos de mediocridade e miséria humana.
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