Gary Gerstle, Washington Post
02 de julho de 2022 | 16h00
O monumental O Capital no Século XXI de Thomas Piketty (2013) ofereceu um dos estudos mais completos e esclarecedores sobre a economia capitalista desde que Karl Marx publicou O Capital original, 150 anos antes. Apesar das cerca de setecentas páginas de análises eruditas e muitas vezes densas, O Capital de Piketty foi um grande sucesso – vendendo mais de 2,5 milhões de cópias no mundo todo. O livro apareceu em um momento crucial. Vinha se formando um descontentamento econômico desde a crise financeira de 2008-2009 e muitos culparam as elites econômicas e seus aliados no governo por terem empurrado para o abismo o sistema bancário mundial (e o bem-estar de dezenas de milhões de pessoas). Em 2011, o Occupy Wall Street deu foco e movimento a essa fúria, facilitou o surgimento de líderes políticos como Elizabeth Warren e Bernie Sanders e gerou uma fome por compreensão sobre os mecanismos do capitalismo capazes de produzir profundas desigualdades econômicas e injustiças. O tomo de Piketty forneceu a visão do funcionamento interno do capitalismo que muitas pessoas estavam buscando com muita urgência.
O Capital no século XXI concentrou a maior parte de sua atenção no mundo industrializado avançado da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. A sequência ainda mais longa de Piketty, Capital e Ideologia (2019), aprofundou essa análise original e expandiu seu escopo para incluir grande parte do resto do mundo, com foco particular em como a escravidão e o colonialismo contribuíram para o triunfo do Ocidente capitalista. O mais recente trabalho de Piketty, A Brief History of Equality, resume perfeitamente as descobertas de seus dois volumes anteriores em “meras” 250 páginas de texto. Os leitores acharão este trabalho atraente por sua brevidade. Mas A Brief History of Equality também é um tipo de livro muito diferente dos dois primeiros.
Embora não seja bem um manifesto, A Brief History of Equality oferece um argumento bem fundamentado sobre por que devemos ser otimistas em relação ao progresso humano, que Piketty define como “o movimento em direção à igualdade”. Nos últimos duzentos anos, observa ele, a expectativa de vida aumentou de 26 para 72 anos. “Nos dias de hoje”, acrescenta, “a humanidade está com a saúde melhor do que nunca e também tem mais acesso à educação e à cultura do que jamais teve”. Piketty está ciente das disparidades no bem-estar dos indivíduos tanto nas sociedades industriais avançadas quanto entre o Norte e o Sul Global. Mas sua leitura da história do século 20 lhe permite pensar que essas desigualdades do século 21 podem ser reduzidas, em parte porque “a marcha para a igualdade em todas as suas formas” é irreprimível, em outra parte porque gerações passadas de reformadores abriram um caminho que ainda ilumina o rumo a seguir.
Piketty se concentra em particular na revolução governamental que as forças liberais e de esquerda impulsionaram entre 1910 e 1980 no Ocidente industrializado. Ao longo dessas décadas, escreve ele, as sociedades ocidentais construíram estados de bem-estar robustos, investiram pesadamente em educação e outros bens públicos e reduziram consideravelmente a desigualdade econômica – e, portanto, a lacuna nas chances de vida – entre ricos e pobres. Piketty chama essa transformação de “revolução antropológica”; para ele, representa um triunfo social-democrata. Os impostos foram o instrumento chave da revolução. Em um país depois do outro, as receitas totais de impostos explodiram, de menos de 10% da renda nacional em 1910 para algo entre 30 e 40% nas décadas de meados do século. Esses regimes tributários eram altamente progressivos e redistribucionistas, com os Estados Unidos (surpreendentemente) liderando a tendência, impondo uma alíquota máxima média de 81% sobre os mais ricos entre 1932 e 1980..
O triunfo da social-democracia no Ocidente do século 20 imbuiu Piketty com a confiança de que a humanidade pode fazer a transição para um novo estágio de igualdade. Pensador socialista engajado e lúcido, Piketty apresenta em A Brief History of Equality um dos programas social-democratas mais compreensíveis e abrangentes disponíveis em qualquer lugar. Suas propostas incluem financiamento público de eleições, assembleias transnacionais para complementar as legislaturas nacionais, um imposto global de 2% sobre todas as fortunas individuais que ultrapassem 10 milhões de euros (cerca de US$ 10,4 milhões), envolvimento dos trabalhadores na gestão das grandes empresas (para promover um “socialismo participatório”) e a revisão de tratados globais para garantir que a circulação internacional de capital facilite, em vez de dificultar, a busca de objetivos-chave, como reduzir os gases de efeito estufa e mitigar a desigualdade econômica entre o Norte e o Sul Global.
Piketty sabe que não será fácil implementar qualquer uma de suas propostas. Mas sua leitura da política no Ocidente do século 20 lhe dá motivos para ter esperança. Naquela época, argumenta ele, movimentos progressistas – mulheres exigindo o voto, trabalhadores lutando por direitos trabalhistas, partidos social-democratas competindo pela vitória nas urnas, minorias lutando por direitos civis – desencadearam uma vasta transformação política. Movimentos de protesto desse tipo, adequadamente ajustados às necessidades dos cidadãos do século 21, podem alcançar resultados semelhantes.
Para defender a eficácia da política progressista, no entanto, Piketty ignora uma visão um tanto sombria oferecida em seu O Capital no Século XXI. Nesse trabalho, Piketty argumentou que o triunfo social-democrata do século 20 não surgiu apenas do trabalho de movimentos progressistas. Igualmente importante – e talvez ainda mais – foi a força destrutiva de duas guerras mundiais. “Foi o caos da guerra”, escreveu Piketty, “que reduziu a desigualdade no século XX (...). Foi a guerra, e não a racionalidade democrática ou econômica, que apagou o passado e permitiu que a sociedade começasse de novo, do zero”.
A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais a que Piketty se refere mataram quase 100 milhões de pessoas, destruíram instalações de produção, despojaram as potências europeias de suas colônias geradoras de renda e em todos os lugares desestabilizaram tanto as fortunas quanto o pensamento das elites econômicas. A catástrofe da guerra, argumentou Piketty em seu trabalho de 2013, deu à social-democracia a chance de triunfar no Ocidente.
Daí a questão-chave para o livro de Piketty de 2022: será que se pode realizar no século 21 uma redução da desigualdade na mesma escala que ocorreu no Ocidente do século 20 sem outra grande guerra? Ou uma pandemia muito mais destrutiva do que esta que estamos vivendo? Ou uma catástrofe climática? Piketty certamente quer responder que sim. Ele traçou um plano inteligente, ponderado e motivado por convicções políticas admiráveis. Mas um plano desse tipo, como o próprio Piketty mostrou em O Capital no Século XXI, talvez não seja suficiente, mesmo quando apoiado por uma falange de movimentos progressistas. A destruição vasta e cruel da vida e da propriedade, Piketty escreveu certa vez, foi o prelúdio do triunfo social-democrata do século 20. Esperemos que o mundo não precise de morte e desespero semelhantes para criar uma era de reconstrução econômica e social do século 21.
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Gary Gerstle é professor emérito de história americana na Universidade de Cambridge e autor, mais recentemente, de The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
A Brief History of Equality
Thomas Piketty – traduzido por Steven Rendall
Belknap - 274 páginas - US $27.95
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