Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo
29 de agosto de 2021 | 05h00
“Paulo Guedes já se desmoralizou por completo e vai se desmoralizar ainda mais se continuar (atuando do modo atual)”, avalia Eduardo Giannetti. Segundo o economista, a presença de Guedes no governo não garante mais uma condução parcimoniosa da política fiscal. “Parece que o apego dele ao cargo é bem maior do que se imaginava e ele não teria grande restrição ou mesmo firmeza para resistir aos impulsos populistas do presidente.”
Giannetti destaca que não há “nenhuma perspectiva” de um crescimento econômico robusto no ano que vem, dado que as reformas prometidas por Guedes não foram feitas e o clima de incerteza política promovido pelo presidente Jair Bolsonaro afasta o investidor. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Houve uma mudança no humor do mercado neste mês. Isso se deve a fatores internos ou o cenário global também dificulta?
Predominantemente à deterioração da situação doméstica. Já está bastante claro que o governo não tem proposta sequer para as reformas tributária e administrativa. Quase não há mais perspectiva de que alguma coisa relevante aconteça. Estamos com um cenário de inflação preocupante, que tem obrigado o Banco Central a conduzir um aperto da política monetária. Isso vai frear o nível de atividade no ano que vem. Por fim, há uma ameaça cada vez mais concreta de uma guinada populista fiscal por parte do governo Jair Bolsonaro, à medida que ele fica acuado e que os hormônios eleitorais começam a funcionar de maneira mais exacerbada.
Como avalia a atuação do ministro Paulo Guedes diante desse cenário?
A presença do Paulo Guedes no Ministério da Economia, que até pouco tempo atrás parecia uma salvaguarda em relação a uma aventura fiscal, já não dá mais essa confiança. Parece que o apego dele ao cargo é bem maior do que se imaginava e ele não teria grande restrição ou mesmo firmeza para resistir – como aliás não tem resistido – aos impulsos populistas do presidente. As atitudes do presidente, aliás, não são novidade nenhuma, porque ele está mostrando o que sempre foi. Só quem acreditou nele foi o ministro quando aceitou entrar nessa aventura. Na época da campanha, eu dizia que os economistas podem ser mais ingênuos sobre a política do que os políticos são ingênuos sobre a economia. E isso o tempo está confirmando.
O ministro deveria deixar o governo ou ele ainda pode fazer alguma coisa?
O último resquício que talvez justificasse a presença dele no governo seria manter o mínimo de responsabilidade na política fiscal. Se ele continuar cedendo – como vem cedendo até aqui – a todas as pressões e exigências, que são crescentes, do governo e do Centrão em relação à política econômica, não vejo mais nenhum sentido. Aliás, já não vejo nenhum sentido na continuidade dele há um bom tempo. Ele já se desmoralizou por completo e vai se desmoralizar ainda mais se continuar.
Em algum momento o sr. viu comprometimento do ministro com a agenda liberal que ele propagou?
Ele dizia que ia zerar o déficit primário no primeiro ano do mandato, que ia privatizar R$ 1 trilhão, que ia fazer reforma tributária e reforma administrativa. Não fez nada disso. Foi quase tudo ao contrário. A privatização praticamente não andou. A aprovação da reforma da Previdência ocorreu muito mais por causa do protagonismo do Congresso. O que se montou no Brasil foi quase um estelionato eleitoral, e pode se chamar assim sem exagero. É lamentável que boa parte do empresariado, em nome de evitar Lula a qualquer preço, mais uma vez tenha embarcado em uma aventura que está custando muito caro para o Brasil e que põe em risco a nossa democracia. Não é a primeira vez que vejo esse enredo de que, contra Lula, vale qualquer coisa. Vimos isso na eleição do Collor também.
Recentemente, houve manifestações de empresários contra posicionamentos do presidente. Acha que o empresariado está desembarcando do governo?
Aí tem havido uma certa injustiça, porque os empresários minimamente lúcidos e informados nunca acreditaram nesse engodo chamado Jair Bolsonaro. Outra parte do empresariado que sempre foi chapa branca e oportunista, agora, muito tardiamente, está começando a se dar conta de que nós estamos indo por um caminho muito ruim e que estamos vivendo um enorme retrocesso nas mais diferentes dimensões, que vão da fiscal à ambiental, passando pelo crescimento econômico, pelo ambiente de negócios e praticamente por qualquer outro tema.
O presidente vem perdendo popularidade e querendo ampliar gastos para reverter essa tendência...
Esse ponto talvez valha a pena analisar um pouco. Você tem de um lado a questão da sobrevivência política de curto prazo, que levou Bolsonaro a ficar de joelhos em relação ao Centrão. De outro, tem os hormônios eleitorais e a questão de viabilizar uma campanha de reeleição em 2022. Essas duas forças convergem para uma guinada populista fiscal - a política já aconteceu há um bom tempo. O próximo capítulo é a tradução disso em ações de política econômica: gastos, cargos, preferências, favores que atendam às demandas crescentes desse grupo (o Centrão) que desde sempre faz o jogo da chantagem em relação ao Executivo.
Tenho usado um modelo de biologia política: você tem na estrutura do governo federal brasileiro uma relação entre hospedeiro e parasita. O Executivo federal é o hospedeiro, e o Congresso fisiológico é o parasita. Quando o Executivo é eleito e está com seu capital político intocado, o parasita fica adormecido. Quando há uma crise política e o Executivo começa a perder capital político, o parasita começa a mostrar vida e apresentar suas demandas. Quando o Executivo está acuado, o parasita manda. Ao fim do mandato, se inverteu aquela relação entre hospedeiro e parasita. Agora, um dos requisitos disso é que o parasita não pode matar o hospedeiro. Então, ele vai aumentando as demandas.
Estamos vendo essa dinâmica se repetir no Brasil desde o início da redemocratização. A pergunta para todos nós brasileiros que queremos aprimorar nossa democracia é como é que nós saímos disso para que não se repita novamente esse enredo que é terrível, porque a partir da segunda metade do mandato o Executivo passa a governar com o que há de mais fisiológico e sinistro na política brasileira.
Qual é a saída?
Tem de haver uma reforma política. Não dá para governar com um Congresso tão fragmentado. Nenhum sistema político vai funcionar se nós não tivermos uma estrutura partidária mais enxuta que permita ao Executivo federal governar com base em negociação, porque isso é parte da democracia, mas negociação de programa, e não negociação de troca de favores. Se a gente não tiver apenas quatro ou cinco partidos apenas no Congresso, com posições razoavelmente definidas em relação aos grandes temas da nação e isso não constituir uma base de sustentação programática, vamos ter um sistema político que já estava em xeque antes do descalabro representado pelo desafio institucional do Bolsonaro.
Com o governo com a popularidade em baixa e em meio a uma pandemia, a campanha eleitoral foi antecipada? Qual o risco para a economia?
Esse panorama antecipa a campanha eleitoral e ameaça a ordem institucional da democracia brasileira por dois canais. Um é o enfrentamento entre Poderes. Se você tiver uma situação em que uma decisão de um poder soberano, o Judiciário ou o Legislativo, não for acatada pelo Executivo, você estará no meio de uma crise institucional gravíssima. E nós já caminhamos para a vizinhança de situações desse tipo. O outro canal é o desespero de um poder que está derretendo a olhos vistos levar o presidente a uma tentativa de excitar a opinião pública de modo a provocar uma situação muito anárquica e conflituosa, que lhe dê meios e legitimidade para algum tipo de Estado de emergência, para algum tipo de demanda de poderes extraordinários para estabelecer a ordem. É muito perigoso excitar uma população que está claramente polarizada, porque ela pode descambar para algum tipo de enfrentamento e descontrole da ordem pública, que cairia como uma luva para alguém que tem um impulso autoritário, que nem o esconde.
Qual cenário o sr. está vendo para a economia em 2022?
Não há nenhuma perspectiva de o País ter um crescimento satisfatório no ano que vem. O nível de investimento continua no piso histórico. A capacidade de investimento do setor público está comprometida. Não criamos um ambiente de negócios institucional para infraestrutura. Com essa incerteza política e econômica, nenhum empresário vai querer comprometer recursos em investimento de longo prazo. Então, a gente está caminhando para, depois de uma pequena recuperação cíclica (em 2021), um ano de crescimento baixo, que talvez mal alcance 2%.
E no panorama político?
O presidente já declarou que não aceita outro resultado que não seja sua vitória eleitoral. Ele questiona a legitimidade do sistema eleitoral de antemão, sem nenhuma evidência e não muito diferente do que Trump tentou fazer nos EUA quando, ao ser derrotado, entrou com aquele discurso de que a eleição tinha sido fraudada, sem nenhuma base ou evidência. Isso levou à invasão do Capitólio, e o que se desenha por aqui é um enredo não muito diferente. Espero que tenha o mesmo desfecho de lá.
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