André Sampaio
“Discutindo-se o orçamento da Justiça, aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro se não julgava útil diminuir a barretina da guarda nacional.” Quem fala é Brás Cubas, então deputado do Império, que abrirá, no capítulo 137 das “Memórias Póstumas”, um discurso pomposo para defender sua tese. E o personagem machadiano acrescenta que, ainda que se tratasse de questão sem amplo alcance, não seria ela objeto indigno “das cogitações de um homem de Estado”. Um leitor de primeira viagem até poderia se perguntar: “Barretina?! Sério?”. Contudo, nada disso é incompatível com o espírito de Brás. Pelo contrário.
Ao reler essa passagem da nossa literatura, não podemos deixar de pensar no quanto a realidade, no caso brasileiro contemporâneo, tem visto encurtadas as distâncias que a separam propriamente da ficção. Quando o “Bruxo do Cosme Velho” escreveu aquelas linhas, pôde mirar muitas retóricas políticas vazias, mais preocupadas com alguma pretensão personalista, desvinculada de interesses públicos reais.
No caso do defunto narrador, sua fala na tribuna do Parlamento visava ao ganho de notoriedade, de maneira que ele pudesse, em algum momento, desestabilizar o gabinete ministerial, derrubando seu titular e assumindo o almejado posto de ministro de Estado. Ironia da pena da galhofa, a alocução caricata acabaria levando à perda do assento de Brás na Câmara.
Cubas fingia ocupar-se de interesses da nação, argumentando, por exemplo, que “a barretina, por seu peso, abatia a cabeça dos cidadãos, e a pátria precisava de cidadãos cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do poder”. Era tal o subnível da proposta política! Mas Machado de Assis, creio, talvez não imaginasse que, um dia, pautas tão prescindíveis e caricatas quanto as de seu personagem dominariam, e com certa recorrência, dias e dias em esferas de poder no Brasil real.
Como se não bastasse uma pandemia, com trágico e elevado número de vítimas, temos lidado, de um lado, com alta taxa de desemprego e inflação, aprofundamento de quadros de insegurança alimentar, crescimento da evasão escolar, ampliação de casos de violência contra minorias e grupos vulneráveis, entre outros graves problemas; e, de outro lado, crise ambiental, crise energética e uma verdadeira viravolta em nossa imagem na política externa.
Enquanto isso, porém, nos temos visto obrigados a ouvir, na ordem do dia, na esfera pública, pautas como voto impresso e ameaças às eleições, ataques a poderes da República, tentativas de cerceamento a críticos políticos —ideias que vão na contramão de um ensino superior para todos e de uma educação inclusiva... E isso sem falar na continuidade de fake news em torno da Covid-19 (e a máscara permanece alvo, a esta altura do campeonato!). Enfim, a listagem é extensa e nem está completa.
No caso de Brás Cubas, o disparatado ao menos era, por si só, inócuo; mas os tópicos que nos têm rodeado denotam um status preocupante do nosso Estado de Direito. A razão, tal como na perspicaz tela de Goya, parece estar em um sono prolongado em nosso país, dando margem à metáfora das fantasmagorias: entre elas, fissuras no arcabouço da democracia e obscurantismos.
Machado era um arguto observador de seu tempo e país e continua atualíssimo, ajudando-nos a pensar a nossa época. “O danado não morreu”, já disse Carlos Drummond de Andrade ao comentar as lentes analíticas do escritor. O mesmo Machado já nos expôs, uma vez, uma dualidade do Brasil: “O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”. Que não tarde a vermos, em meio a essa dialética, prevalecer o Brasil dos melhores instintos, um que faça jus à nossa história de lutas pela conquista e defesa de direitos e de busca por uma sociedade de cidadania consciente.
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