terça-feira, 17 de agosto de 2021

Duda Mendonça trincou imagem de honestidade do PT com depoimento-bomba a CPI em 2005, FSP

 


SÃO PAULO

Comissões Parlamentares de Inquérito são ricas em depoimentos-bomba, mas nunca houve algo parecido à fala de quase dez horas do publicitário Duda Mendonça à CPI dos Correios, em 11 de agosto de 2005.

A começar pela própria surpresa com a aparição de Duda, morto nesta segunda-feira (16) aos 77 anos e que pegou aquela comissão desprevenida. Apenas sua sócia, Zilmar da Silveira, era aguardada, mas o responsável por eleger o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apareceu querendo ser ouvido.

O publicitário Duda Mendonça e sua então sócia, Zilmar Fernandes da Silveira, durante depoimento à CPI dos Correios, em agosto de 2005 - Lula Marques - 11.ago.2005/Folhapress

Ele havia passado a noite em claro, na sede da Polícia Federal em Salvador (BA), antes de embarcar de manhã em um jato para Brasília praticamente emendando um depoimento no outro. O que o extenuado Duda revelou deixou o PT insone durante muito tempo.

O marqueteiro disse ter recebido R$ 15,5 milhões do partido (R$ 36,3 milhões em valores atualizados) sem emitir nota fiscal, por serviços prestados para diversas campanhas petistas em 2002.

A revelação já seria explosiva, mas Duda fez dois adendos que a tornaram ainda mais impactante. O primeiro, que a maior parte desses recursos (R$ 11,9 milhões) foi repassada não pelos canais oficiais do PT, mas por uma figura estranha ao partido, o publicitário Marcos Valério de Souza.

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Como se não bastasse, R$ 10,5 milhões desse montante haviam sido depositados no exterior, em uma offshore nas Bahamas. Zilmar, em seu próprio depoimento, complementou que R$ 300 mil haviam sido recebidos em dinheiro vivo, dentro de um pacote sacado em uma agência do Banco Rural.

“Esse dinheiro era claramente de caixa dois, a gente não é bobo. Nós sabíamos, mas não tínhamos outra opção, queríamos receber”, declarou Duda, num dos pontos mais fortes de seu depoimento.

Lula entre seu assessor José Graziano (à esq.) e seu marqueteiro, Duda Mendonça (à dir.), durante o primeiro debate dos candidatos à Presidência em 2002, promovido pela TV Bandeirantes - Jorge Araújo - 4.ago.2002/Folhapress

A real motivação de Duda para o sincericídio nunca esteve totalmente clara.

Da boca para a fora, ele dizia que queria tirar um peso das costas e seguir com sua até ali bem-sucedida carreira de publicitário, que havia conseguido duas vezes levar à vitória políticos tidos como “inelegíveis”: o ex-prefeito paulistano Paulo Maluf e o próprio Lula.

Nos bastidores, no entanto, a história contada pelo marqueteiro era mais pragmática: ele vinha sendo chantageado por Marcos Valério e resolveu se antecipar antes que a bomba estourasse no seu colo.

As consequências das revelações de Duda forma múltiplas, sendo algumas instantâneas e outras de longo prazo.

De forma imediata, o publicitário apagou as últimas brasas de dúvida que o PT tentava manter acesas sobre a credibilidade do então deputado federal Roberto Jefferson, quando revelou à Folha o esquema do mensalão.

Era difícil, afinal, arrumar uma fonte mais fidedigna do que o criador do “Lulinha paz e amor” da campanha de 2002, embora ele tenha isentado o presidente de responsabilidade pessoal no caso.

Minutos depois das declarações do publicitário, alguns deputados federais petistas se reuniram no plenário da Câmara perplexos. Alguns deles choraram abertamente.

“O sincericídio do Duda o aliviou na CPI e na Justiça, mas nos chocou e matou nosso ânimo petista de então”, diz Chico Alencar, que aparece numa imagem na Folha no dia seguinte chorando. Ele logo deixaria o PT rumo ao PSOL, junto com outros parlamentares do partido decepcionados com as revelações.

O então deputado federal petista Chico Alencar leva mãos ao rosto enquanto chora em plenário da Câmara dos Deputados depois de saber das declarações de Duda Mendonça
O então deputado federal petista Chico Alencar leva mãos ao rosto enquanto chora em plenário da Câmara dos Deputados depois de saber das declarações de Duda Mendonça - Aílton de Freitas - 11.ago.2005/Agência O Globo

O depoimento obrigou Lula a finalmente ir a público se explicar, o que ele fez no dia seguinte, no início de uma reunião ministerial de emergência. “Eu não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir desculpas”, afirmou o então presidente.

O mea culpa hoje pode parecer extraordinário, mas à época foi considerado tímido, inclusive por aliados. O então presidente do PT, Tarso Genro, chamou-o de “insuficiente”.

Pela primeira vez, Lula parecia vulnerável a ponto de a discussão sobre a abertura de um processo de impeachment se tornar não uma questão de “se”, mas de “quando”.

Mesmo que sobrevivesse no cargo, o petista não teria chance de se reeleger em 2006, conforme o senso comum da época.

Publicada no dia seguinte ao depoimento de Duda, embora ainda sem medir seu impacto, uma pesquisa Datafolha apontou pela primeira vez derrota dele em segundo turno para o tucano José Serra (PSDB), por 48% a 39%.

Mas, nos dias seguinte, a oposição vacilaria em levar adiante o impeachment, temendo a reação das bases petistas, o que acabou dando fôlego para o presidente se recuperar.

O erro político naquele momento hoje colabora para que os adversários de Jair Bolsonaro insistam em levar adiante um processo de afastamento contra o presidente, outro legado, ainda que indireto, da fala de Duda.

Mas a maior consequência de longo prazo foi sem dúvida a mudança definitiva da imagem do PT, para ser considerado um partido “normal”, ao menos no quesito corrupção.

Curiosamente, o próprio marqueteiro havia colaborado para que a legenda se apresentasse como paladina neste campo, numa famosa propaganda de TV do PT em que ratos roíam a bandeira brasileira.

Após Duda, dirigentes petistas caíram em desgraça, e a eclosão do petrolão, uma década mais tarde, foi largamente vista como um desdobramento natural do mensalão. No meio do caminho, houve outros escândalos, como os que derrubaram o então todo-poderoso da economia, Antônio Palocci.

Dali por diante, o PT sempre teve dificuldade para fazer da honestidade um item principal de campanha, como vinha repetindo desde sua fundação, em 1980.

“Prefiro dizer o que sei e ir dormir. Hoje eu vou dormir”, afirmou o publicitário, em determinado momento de seu longo testemunho, dizendo-se mais leve. Já o PT segue tendo pesadelos até hoje, 16 anos depois.

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