segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Quão seguro é se fartar de pão?, FSP

 Rubens Onofre Nodari

Doutor em agronomia, é professor titular da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina)

Sonia Corina Hess

Doutora em química, é professora titular da UFSC

“Debulhar o trigo. Recolher cada bago do trigo. Forjar no trigo o milagre do pão. E se fartar de pão.” A importância do trigo para a alimentação humana vem sendo reconhecida há milênios, de diferentes maneiras, como na poesia e melodia por Chico Buarque de Holanda e Milton Nascimento. Foi um dos cereais mais importantes como alimento de muitas civilizações ao longo da história. Nos últimos anos, 9% da área agricultável do mundo têm sido cultivadas para produzir trigo.

Presentemente, avanços científicos e tecnológicos têm ameaçado a sadia qualidade do trigo. No Brasil, o pão nosso de cada dia pode nos dar hoje resíduos de até 108 diferentes ingredientes ativos de agrotóxicos, com o agravante de que 39 deles (36,1%) já são proibidos em outros países.

Os herbicidas à base de glifosato são os agrotóxicos mais utilizados em nível mundial e também no Brasil. Em 2015, a substância foi considerada potencialmente cancerígena pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc). Os produtos à base de glifosato têm sido associados a vários tipos de doenças em humanos, como diabetes, obesidade, depressão e infertilidade, entre outras.

No Brasil, esses tipos de herbicidas estão autorizados para uso no cultivo do trigo, exceto para a dessecação. Mas há muitas denúncias de que tem sido comum a prática da dessecação com tais agrotóxicos em trigo, o que resulta na presença de seus resíduos nos grãos.

doença celíaca, ou intolerância ao glúten, é um problema que vem crescendo tanto no Brasil quanto no mundo. O glúten se forma em produtos derivados do trigo e outros cereais de inverno e é considerado a causa da doença celíaca. As características da doença celíaca, assim como os efeitos do glifosato, estão associadas a desequilíbrios nas bactérias intestinais; deterioração de enzimas envolvidas com a desintoxicação de toxinas ambientais; deficiências de ferro, cobalto, molibdênio, metionina; risco de linfoma não Hodgkin; e problemas reprodutivos, entre outros.

A mais recente ameaça é o trigo transgênico. Desenvolvida na Argentina, uma variedade de trigo transgênica, que tolera mais estresses hídricos de seca, é também resistente a herbicidas à base de glufosinato de amônio. Esses herbicidas, autorizados para uso na dessecação de trigo no Brasil, já foram proibidos em alguns países. Tal variedade transgênica de trigo está em análise na CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), que poderá decidir pela autorização do consumo e do cultivo no Brasil.

Se a sadia qualidade do trigo e, consequentemente, de seus produtos derivados não for recuperada por meio da produção e consumo do cereal sem resíduos de agrotóxicos causadores de doenças e sem a transgenia, o encanto cantado por Chico Buarque e Milton Nascimento, mesmo que fique no imaginário, fará com que muitas pessoas já não se “fartem de pão” devido às consequências dos perversos resíduos nele contido.

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