Em busca de consolidar sua candidatura à Presidência da República em 2022, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), multiplicou os repasses de verbas políticas para atender a pedidos de parlamentares.
O volume de recursos, considerado inédito entre os políticos, beneficia não só seus aliados na Assembleia Legislativa, mas até mesmo deputados federais. O vínculo de cada parlamentar com as liberações, feitas com recursos públicos, não é divulgado ao público pela gestão tucana.
Neste ano, até o fim de julho, já foram liberados ao menos R$ 1,05 bilhão em recursos extras para que parlamentares irriguem suas bases políticas com obras de infraestrutura, gastos com saúde, financiamento de entidades e com outros benefícios.
O valor é quase seis vezes o liberado pelo governo com essa finalidade em todo o ano de 2020 —de aproximadamente R$ 182,9 milhões.
Os dados sobre a liberação de verba política foram obtidos pela Folha após sete pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) e após a reportagem consultar e sistematizar mais de 5.000 folhas de papel com o registro desses repasses pela Secretaria da Casa Civil, comandada por Cauê Macris (PSDB), aliado de Doria e ex-presidente da Assembleia Legislativa.
O governo Doria não forneceu o material digitalizado, conforme pedido por meio da LAI, e não respondeu se mantém o controle dessa verba pública de forma digital ou apenas por meio das folhas armazenadas em caixas de papelão. Não há transparência pública sobre esse repasses.
Em nota, o governo afirmou que “os investimentos são resultado de ações sociais para enfrentar os desafios pós-pandemia” e que a liberação de recursos é isenta e tem tratamento transparente.
Em 2021, ano em que Doria declarou querer disputar as prévias presidenciais do PSDB, o tucano não só ampliou o montante liberado mas também o rol de beneficiados, incluindo 34 deputados federais e a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP).
Além de Doria, seu vice-governador, Rodrigo Garcia (PSDB), também já admitiu que pretende se candidatar 2022 ao Governo de São Paulo.
O gasto com deputados ocorre no momento em que Doria e Garcia ampliam inaugurações e visitas ao interior na tentativa de melhorar sua popularidade.
Para críticos dos tucanos, há uso de verba pública com o objetivo de dar sustentação política ao governo e formar uma coligação para 2022, arregimentando deputados e prefeitos como cabos eleitorais.
Em média, o governo disponibilizou R$ 11,3 milhões para 93 parlamentares, entre deputados federais, deputados estaduais e a senadora. Cerca de R$ 28,8 milhões foram alocados apenas com demandas do ex-líder de governo e atual presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, Carlão Pignatari (PSDB), que lidera a lista.
Essas despesas não são referentes às emendas parlamentares impositivas, recurso anual de aproximadamente R$ 5,1 milhão a que cada deputado estadual tem direito, independentemente de seu partido, e cujo pagamento é obrigatório.
Em 2021, a verba prevista para as emendas é de R$ 481,2 milhões. Até agora, R$ 161 milhões desse montante já foram efetivamente pagos.
Já o R$ 1,05 bilhão liberado até julho foi distribuído de maneira desigual —a maior parte direcionada a políticos e partidos que compõem a base governista de Doria, embora alguns oposicionistas recebam em menor escala.
São recursos processados como “demandas parlamentares”, também chamados por deputados de “emendas voluntárias”, ou seja, o pagamento não é obrigatório e ocorre conforme a conveniência do governo tucano.
O valor se aproxima do orçamento de R$ 1 bilhão previsto para o programa Bolsa do Povo em 2021, a principal ação social e de transferência de renda do governo Doria, que visa beneficiar 2 milhões de pessoas.
Essas liberações aos deputados servem como moeda de troca para formar maioria na Assembleia, a exemplo do que ocorre no governo de Jair Bolsonaro (sem partido), que distribuiu emendas e cargos ao centrão em troca de blindagem no Congresso.
De forma semelhante ao processo das emendas parlamentares, os deputados apresentam a lista de verbas que querem destinar a cada cidade e sua finalidade.
Valores redondos encontrados pela Folha indicam que Doria ofereceu pacotes fechados de verbas a alguns parlamentares, o que foi confirmado por políticos de diferentes legendas.
Outros deputados, no entanto, negam haver combinação prévia de valores e afirmam que o governo libera apenas as demandas que cabem no caixa estadual e que atendem a programas da gestão. Parlamentares também disseram apresentar pedidos que não chegam a ser pagos.
A reportagem apurou que os pleitos chegaram a ser tratados pessoalmente com Doria e com Garcia e mais frequentemente com Macris ou outros secretários tucanos —Marco Vinholi (Desenvolvimento Regional e presidente do PSDB paulista) e Antônio Imbassahy (secretário especial do Escritório de Representação do Estado de São Paulo em Brasília).
O deputado estadual Barros Munhoz (PSB), que foi líder de governo nas gestões José Serra e Geraldo Alckmin (ambos do PSDB), afirma que Doria melhorou a relação com o Legislativo e tem liberado mais verba que seus antecessores e de forma mais célere.
O deputado afirma que, entre os repasses de Doria, há emendas de governos passados não honradas e defende as liberações para aliados. “Todo governante luta para formar maioria para aprovar projetos, isso é da natureza da governança.”
Já o deputado estadual Campos Machado (Avante), que não foi contemplado com os repasses voluntários em 2021, critica a postura de outros deputados para conseguirem a verba extra.
"Essa palavra mágica chamada 'emenda' faz milagres. Muda conceitos, opiniões, ideias, concepções e me atrevo dizer que muda caráter". “Estou aqui há oito mandatos e nunca vi tanta disparidade como tem no governo do senhor João Agripino [Doria]", diz Machado, adversário do governador e aliado de Alckmin.
De acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, se houver interesses não legítimos ou vantagens eleitorais nas liberações, há brecha para enquadrar a prática como improbidade administrativa ou abuso de poder político nas eleições, ou seja, uso da máquina de governo para beneficiar Doria e Garcia em 2022.
A dificuldade em obter informação sobre esses repasses também é alvo de crítica.
"Há fortes indícios de que essas informações estariam em meio digital e poderiam ser passadas para o cidadão de maneira mais fácil. Inclusive, as emendas impositivas já estão no Portal da Transparência. Qual é a diferença para essas não estarem?", diz Mariana Atoji, da ONG Transparência Brasil.
A reportagem questionou a não publicação desses dados e a disponibilização física, já que a gestão Doria instituiu o programa SP sem Papel.
“A Folha teve acesso total e irrestrito aos documentos solicitados. As suposições apontadas nos questionamentos realizados não encontram qualquer amparo na realidade”, afirmou a Casa Civil.
“As solicitações têm tratamento transparente para garantir a lisura do processo, com cada andamento da requisição sendo informado ao solicitante”, completa.
Cientistas políticos avaliam, por sua vez, que embora as liberações sejam vistas como “velha política” ou “toma lá, dá cá”, esses repasses fazem parte da relação entre Executivo e Legislativo na democracia e podem beneficiar a população atendida —mas deveriam ser públicos.
Ao menos 634 das 645 cidades paulistas foram indicadas nas emendas voluntárias, em geral destinadas a compra de ambulâncias, financiamento de Santas Casas, obras de infraestrutura e de atividades de esporte.
Membros do governo e deputados aliados a Doria negam haver viés político ou eleitoral na distribuição de verba. Alguns apontam que somente o pagamento de emendas não é suficiente para atrair um partido para uma coligação.
LIBERAÇÃO É FEITA DE MANEIRA ISENTA, DIZ GOVERNO DE SP
Questionado pela Folha, a gestão Doria não informou os critérios adotados para as liberações e não explicou o crescimento do montante entre 2020 e 2021.
“O Governo de São Paulo não pode ser vítima de juízo de valor por iniciativas governamentais para atender as pessoas mais carentes neste momento em que as medidas são necessárias para superar a crise sanitária e econômica”, afirma em nota.
“Todos os parlamentares, sejam deputados federais, estaduais, vereadores ou a sociedade civil organizada contribuem com o governo do estado para identificar as demandas para melhorar a vida das pessoas. A liberação de recursos é feita de maneira isenta, pois as demandas contemplam, inclusive, deputados da oposição”, completa.
A senadora Mara Gabrilli afirmou que recebe muitos pedidos de prefeitos e vereadores para melhorias na saúde. "Nosso papel é buscar recursos junto ao governo federal e estadual, que têm trabalhado rapidamente para fazer o repasse. Nossos pedidos foram 100% para saúde, para aliviar municípios e Santas Casas, principalmente por conta da pandemia."
Procurado, o presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, Carlão Pignatari, não se manifestou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário