quinta-feira, 26 de agosto de 2021

'Esquecidos', crianças e adolescentes vivem internados sob violações, FSP

 Paula Corrêa

Poeta, escritora e jornalista, é autora dos livros ‘In Vitro’ (2004), ‘As Calotas não me Protegem do Sol’ (2010) e ‘Tudo o que Mãe diz é Sagrado’ (ed. Leya, 2013)

São muitos os caminhos da institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil. Mesmo com a Lei da Reforma Psiquiátrica, promulgada em 2001, e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, o Brasil continua internando pessoas. A verdade é que, mesmo sem as práticas medievais dos manicômios, ainda há muita gente neste momento vivendo, morando e sendo muito, mas muito solitária em instituições no Brasil. São comunidades terapêuticas, hospitais psiquiátricos, instituições de acolhimento para pessoas com deficiência etc.

O tema não é novo. A Humans Right Watch já esmiuçou a questão das internações de crianças e adultos em instituições de acolhimento em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia no relatório “Eles ficam até morrer”, de 2018. Nele, são mostradas diversas violações aos direitos humanos com pessoas amarradas às suas camas, falta de privacidade, uso compartilhado de roupas e utensílios como escovas de dentes, locais que mais parecem prisões com grades e cadeados, superlotações, falta de funcionários, curatela com o BPC (Benefício de Prestação Continuada) dado a diretores de instituições e não às famílias.

No livro recém-lançado “Saúde Mental: Retratos de Crianças Esquecidas (ed. Labrador)”, Flávia ​Blikstein faz um brilhante e pungente levantamento sobre crianças e adolescentes realmente “esquecidos” pela sociedade. O estudo inédito chegou ao número de 28 instituições ou entidades sociais que atendem exclusivamente pessoas com deficiência em regime de acolhimento ou internação de longa permanência somente no estado de São Paulo.

O livro, resultado de sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Saúde Pública da USP, mostra que a maioria dessas instituições atende ao público infantojuvenil. São denotadas aí uma série de violações dos direitos das crianças e adolescentes, a começar pelo atendimento de adultos, adolescentes e crianças no mesmo espaço institucional. A medida protetiva de acolhimento institucional, ao ser determinada, deve ocorrer em serviço específico a essa população, com cuidados a elas endereçados, e não em espaço misto.

A pesquisa mostra, em inúmeras tabelas e dados coletados, diversas informações relevantes, como a frequência de duração das internações em uma instituição, mostrando que a longa permanência é a regra. Como exemplo, o estudo revela que o óbito é o principal motivo de desligamento, em impressionantes 46,6% dos casos.

Os modos de financiamento e convênios com o poder público também são esmiuçados, mostrando que a maioria deles são associações privadas, sendo que metade delas possui vinculação com o poder público em algum nível de gestão. A pesquisadora sugere que seja feito um censo das pessoas que moram nessas instituições e que crianças e adolescentes, com deficiência ou não, estejam em locais que tenham portas e janelas abertas, para que todos possam ver e saber o que acontece lá dentro. E, ainda melhor, que essas crianças e adolescentes tenham seus direitos, previstos na Constituição, respeitados e zelados, e possam ter em seu norte a reinserção à sociedade.

É importante também que se pergunte: a quem interessa a manutenção desse sistema? A sociedade não quer enfrentar sua lógica capacitista e excludente? São somente famílias que não têm uma rede de apoio para o cuidado e acabam por pedir ajuda ao “Estado”? Ou trata-se de um sistema lucrativo que interessa a donos e diretores de instituições? E, ainda, a quem interessa que essas informações e dados se mantenham dispersos, descentralizados e oclusos?

Nestes tempos de pandemia, ficou claro que esconder e obliterar ou não dados é resultado de uma ação política. No caso da pandemia, uma política mortífera e, muito possivelmente, corrupta. No caso das políticas em saúde mental, também. É preciso que mais pesquisas sejam feitas, que mais artigos sejam escritos, mais jornalistas se interessem, busquem informações e cruzem dados. E também que não deixemos, como sociedade, de questionar e não aceitar que tratamentos de exclusão perpétua sigam subterrâneos aos olhos da população em geral.

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